quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

ANO NOVO, VELHOS RITUAIS


          Mais um ano chega ao fim, e se não houver nenhuma hecatombe inesperada, logo no dia seguinte um novo ano se iniciará. Assim como no Natal, as pessoas irão se reunir, trocar votos de felicidade, e desejar um futuro melhor do que foi a vida até aqui. Mas ao contrário do Natal, onde as festas têm características mais familiares, e as pessoas ficam mais compenetradas, alguns chegando inclusive às lágrimas (muitos ficam tristes no Natal), o Ano-novo ganha sempre contornos mais carnavalescos. Aliás, o brasileiro tem a estranha mania de transformar tudo em Carnaval, e o Natal é uma das poucas festas que escapa.
           O Réveillon também é o momento das esperanças no futuro, e para garantir um futuro melhor vale tudo, até mesmo as mais bizarras superstições. Roupas brancas clamam por paz, roupas íntimas ganham a cor que simboliza a principal necessidade de quem a usa (dourado para um ano melhor financeiramente, vermelho para quem busca um novo amor, e assim por diante). Mas o que seria dito de pessoas na beira de uma praia, todos vestidos de branco (menos as cuecas, calcinhas e sutiãs, que inclusive ficam visíveis debaixo das roupas brancas, tornadas quase transparentes pela água, pelo suor e pelas bebidas, pois há quem inclusive tome banho de champanhe ou cerveja), comendo uvas verdes, enquanto dão pequenos saltos sobre as ondas, apoiados em um pé só, coincidentemente, sempre o direito? Em qualquer outra época do ano, a conclusão seria de que se trata de lunáticos, ou de adeptos de alguma religião exótica (o que para muitos é a mesma coisa). Mas no Ano-novo pode. Até os artistas fazem!
           Impressionante a necessidade do ser humano de repetir sempre os mesmos rituais. Parece coisa de homens primitivos, de mentalidades animistas, pré-científicas. Mas mesmo nossa “avançada” mentalidade cartesiana é dada a fazer as coisas sempre do mesmo jeito como foi feito da primeira vez que deu certo. Agimos inconscientemente como se fazer diferente fosse provocar a ira dos deuses, e com isso trazer castigo, desgraça. Quando um rito é praticado por uma única pessoa, ele é considerado patológico, é batizado com o simpático nome de “TOC” (Transtorno Obsessivo-compulsivo, último grito da moda, especialmente depois que Roberto Carlos admitiu sofrer dele), e um tratamento médico e psicológico é sugerido. Mas quando um determinado rito é praticado por todos, ou pela maioria, ele passa a ostentar o status de “tradição”, “cultura”, e não apenas sua prática é incentivada, como não praticá-lo é que passa a ser condenável. “Todo mundo faz isso, por que só você não o faz? Por que você sempre quer ser diferente?” A velha questão da aceitação no grupo social, cujo preço muitas vezes é agir como todo mundo, mesmo que às custas de contrariarmos nossas convicções pessoais.
           Nossos ritos sociais, em geral, não se restringem ao aspecto espacial, mas também possuem uma dimensão temporal. Como já anteriormente citado, comer uvas vestido de branco enquanto se pula sobre um pé só sobre as ondas da praia só é considerado normal na noite de Ano-novo. Em qualquer outra data seria um ato insano, dá até internação. As tradições (rituais socialmente consagrados) têm não apenas lugares e formas, mas também tempos “corretos” para serem praticadas. Além de rituais, o ser humano também é inclinado a criar ciclos, como se a vida fosse uma dança, com seus ritmos peculiares. Nos inclinamos a fazer sempre as mesmas coisas nos mesmos tempos. Tudo bem, meu leitor pode retrucar que toda a natureza opera por ciclos, e todos os seres vivos moldam seus comportamentos conforme esses ciclos. Mas no caso de animais e plantas isso não é uma escolha; eles são geneticamente programados para responder a esses ciclos naturais. O ser humano, por sua vez, mesmo podendo escolher, prefere se manter preso aos seus rituais e ciclos. E mais grave: os rituais e ciclos humanos, em larga medida, já não são mais orientados por aspectos naturais, ou mesmo pelo arcabouço cultural acumulado ao longo da história. Hoje muito de nossos ritos e ciclos têm como mola-mestra o mover da máquina capitalista, e orientam, na verdade, o ritmo de nosso consumo.
           Reparem como ao longo do ano, não há um momento sequer em que a mídia não esteja propagandeando nenhuma data festiva, datas essas que foram transformadas de tradições a meros ensejos para o consumismo. Tudo convenientemente preparado para nos fazer adquirir bens, gastar dinheiro. Começamos o ano sendo estimulados a gastar com o Carnaval, e imediatamente após ele, a mídia já começa a divulgar a Páscoa. Logo depois vêm o Dia das Mães, o Dia dos Namorados, as Festas Juninas, o Dia dos Pais, o Dia das Crianças, o Dia de Finados (até o dia dos mortos vira objeto de consumo, e os floristas agradecem), e por fim, o Natal. E cada uma destas datas tem seu significado original meticulosamente distorcido, para nos fazer gastar dinheiro.
           Desejo que 2011 seja o ano em que começaremos a fazer diferente. Que o encerramento de mais esse ciclo, que inclusive não marca só um novo ano, uma vez que 2011 também inicia uma nova década, nos leve a uma reflexão que nos faça ressignificar nossos velhos rituais e ciclos. Que possamos parar para simplesmente contemplar a beleza de nossas tradições, tradições essas que muitas vezes já não conseguimos mais enxergar, ocupados como estamos, ora consumindo, ora trabalhando para termos mais dinheiro para consumir ainda mais. Que possamos olhar os velhos ritos com novos olhos, e assim iniciarmos uma ação verdadeiramente transformadora em nossas vidas. Mas principalmente que possamos olhar nos olhos uns dos outros e dizer de coração: FELIZ ANO-NOVO!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Jesus x Noel ou O Verdadeiro Sentido do Natal



E então é natal (e a guerra terminou...)
Para o fraco e para o forte (...se você quiser)
Para o rico e para o pobre
O mundo é tão errado
(Tradução de trecho da canção “Happy Xmas, War is Over” – Feliz Natal, a Guerra Acabou, de John Lennon)

           Papai Noel tem uma origem curiosa. Um jovem chamado Nicolau (São Nicolau, para os católicos e ortodoxos orientais), nasceu no século 3, em uma cidade grega chamada Patras. Quando seus pais morreram, ele doou toda sua fortuna para os pobres, e ingressou na vida religiosa. Diz a lenda que, na cidade de Nicolau, viviam três irmãs que não podiam se casar, em virtude de serem muito pobres, e não terem como pagar o dote à família do noivo. O pai delas decidiu então vendê-las como escravas, conforme elas fossem atingindo a idade adulta. Quando a primeira filha estava para ser vendida, Nicolau, ainda jovem, soube do fato, e jogou um saco cheio de moedas de ouro pela chaminé da casa, que caiu dentro de uma meia colocada ali para secar. O mesmo ocorreu com a segunda e a terceira filha, e assim todas puderam se casar. Apenas após a terceira filha ter recebido o “presente”, o pai soube quem era o misterioso benfeitor, e passou a pregar sobre sua bondade. Como Nicolau se transformou depois na figura psicodélica de um velho de longas barbas brancas, vestindo um pijama e um gorro vermelhos, morando no Pólo Norte, e guiando um trenó voador puxado por renas, não faço idéia.
Todo Natal é a mesma coisa. A cada esquina um trabalhador desempregado faz bico vestido de Papai Noel, símbolo-mor do consumismo exacerbado tão em voga em nossa sociedade, lembrando-nos de nosso compromisso de comprar, de adquirir bens de consumo sempre e cada vez mais. A mídia nos assola com intensa propaganda, sempre com as palavras de ordem do consumismo. Uma grande loja de departamentos, inclusive, há vários anos vem poluindo nossos ouvidos com a mesma musiquinha irritante. Os Shopping Centers ficam abarrotados de pessoas, surgem placas e cartazes anunciando promoções por todos os lados, e gente, mas muita gente mesmo, comprando e comprando e comprando e comprando. Os produtos da moda disputados à tapa, filas intermináveis para ir ao caixa, e dívidas ainda mais intermináveis por conta das prestações assumidas por se comprar tantas coisas.
 Papai Noel e o Natal se tornaram talvez os maiores ícones do capitalismo. Tanto é que muitos pensam que a cor da roupa do Papai Noel foi escolhida por ser a mesma da logomarca de uma grande multinacional produtora de refrigerantes. Irônico: um jovem que, ao ficar órfão, doou todo seu dinheiro aos pobres, ingressou na vida monástica, e ficou famoso por doar moedas de ouro para moças pobres poderem se casar, se torna o grande símbolo do consumismo desenfreado, do capitalismo selvagem.
            Todo Natal é a mesma coisa. Pessoas se reencontram, trocam presentes e perdões, fazem votos para um Ano-novo que, invariavelmente, imaginam e desejam será melhor do que o ano em curso. E fazem isso com a família, no trabalho, na escola, no clube, enfim, em todos os lugares que freqüentam. Alguns choram, ficam tristes, depressivos, e quase nunca são capazes de dizer o motivo. Comemos aquelas frutas secas importadas do hemisfério norte, altamente gordurosas, a despeito de estarmos em pleno calor de um verão tropical. À meia-noite, abraços e votos de felicidade são distribuídos, ao som de uma imensa orquestra de fogos de artifício. O Natal parece ter poderes mágicos, uma estranha aura, capaz de transformar nossos individualismos, e convertê-los aos mais sublimes altruísmos. Parece ter o poder de nos fazer parar de olhar apenas para nossos próprios umbigos, para voltarmos nossas atenções para nossos semelhantes menos favorecidos. As pessoas fazem e participam de campanhas, fazem doações e mutirões. Alimentos, roupas e presentes são distribuídos em orfanatos, asilos, hospitais, e até nas ruas, para os párias excluídos de nossa máquina social. Por que só no Natal? 




Mas alguém ainda se lembra do que realmente é o Natal? Historicamente, a Igreja Cristã determinou o dia 25 de dezembro como sendo a data de nascimento de Jesus Cristo. Não pretendo aqui entrar no mérito de que muito provavelmente Jesus não nasceu nesse dia; trata-se na verdade da data de nascimento do deus Mitra, divindade muito popular nos tempos de Jesus, cuja vida apresenta uma série de paralelos com a vida de Jesus, e cujo culto apresenta muitas similaridades com o Cristianismo que surgiria logo depois. Para todos os efeitos, consideremos o dia 25 de dezembro como a data simbólica do nascimento de Cristo.
Quase ninguém mais se lembra disso. Para muita gente, o Natal só continua associado ao nascimento de Jesus na hora de montar o presépio, e nem todos montam presépios, especialmente os protestantes, avessos a toda e qualquer forma de arte sacra, à exceção da musica. Magnífica invenção de São Francisco de Assis, o presépio é o resto, a sobra atávica do verdadeiro sentido do Natal. Jesus Cristo, expressão máxima do Amor de Deus para com a humanidade, acaba de nascer. O menino Jesus é o grande símbolo da esperança, do renascimento. Naquele recém-nascido, deitado em uma manjedoura, na companhia de seus pais, dos magos, de alguns animais, pastores e anjos, o milagre é atualizado: Deus está se fazendo homem, para anunciar à humanidade que Ele mesmo, Deus, está propondo sua reconciliação com a raça humana, está anunciando o fim de todo sofrimento, isso que a Igreja chama hoje de “salvação”.
 O sentimento de perdão que fica na moda nos tempos natalinos é fruto do perdão de Deus, anunciado no nascimento de Cristo. Mas Jesus não estabelece tempos, datas ou prazos para o perdão. Segundo o Mestre, não deve haver sequer limites quantitativos para o perdão: ele deve ocorrer sempre que houver a ofensa. Naquele tempo, Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” Jesus Respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (MT 18: 21-22). Isso não significa que devemos perdoar apenas 490 vezes. Jesus apenas parte do uso do número sete feito por Pedro (sete era o número da perfeição, de um ciclo completo, na concepção judaica), para dar um número grande o suficiente para que se perca a conta no meio do caminho. O perdão deve ser infinito. Até porque talvez a ofensa também o seja.
Infelizmente, nem mesmo a figura de Jesus de Nazaré escapou do processo de “papainoelização”, que também vitimou nosso querido São Nicolau. Os movimentos cristãos pentecostais e carismáticos iniciados no século XX, cujas origens remontam às teologias do Destino Manifesto e da Prosperidade, que abençoaram e sacralizaram a fortuna, o acúmulo de capital, alteraram radicalmente a imagem de Cristo. Jesus deixa de ser a expressão máxima do amor de Deus, que se fez homem para proclamar o perdão, para se transformar em uma espécie de “Papai Noel”, ou então numa modalidade qualquer de “gênio da lâmpada”, sempre alerta para satisfazer nossos caprichos mais mesquinhos, sempre disposto a nos suprir de toda sorte de bens materiais, a nos trazer riquezas, especialmente as mais supérfluas. Talvez aí esteja a explicação para esse ar de magia que toma conta de todos no Natal: tomados pelo remorso de sempre buscarmos nossas fortunas pessoais sem nos preocuparmos com o sofrimento de nosso próximo, uma vez por ano, pelo menos, nós conseguimos nos despir de nossos egoísmos, em nome do bem-estar de nosso semelhante. E o que provoca essa transformação tão radical? Para mim, esse é o grande milagre do Natal: a simples contemplação do Menino Jesus, o mero olhar para a doçura daqueles olhinhos infantis nos faz sentir o perdão de Deus, e nos enche de esperança. Assim, passamos a ver o mundo com outros olhos, os mesmos olhos com os quais Deus nos vê. Já afirmei em outra ocasião que o mundo ocidental seria outro se, ao invés das cruzes, os altares de nossas igrejas tivessem manjedouras. Mesmo a morte de Jesus, tão usada pelas igrejas para tentar nos converter à fé pela culpa por Ele ter sofrido em nosso lugar, não seria nada além de um simples martírio, não teria sentido algum, se depois não houvesse a ressurreição. E a ressurreição de Cristo, que prenuncia a ressurreição de todos nós para uma nova vida, é um novo nascimento. A ressurreição é um novo Natal!
Precisamos parar para refletir sobre essa questão tão importante. Jesus jamais esperou datas especiais, muito menos as ocasiões festivas, para fazer o bem, para anunciar o Reino de Deus. Jesus curava, consolava e ensinava sempre que se via diante de alguém que carecia de cura, de consolo ou de ensino, não importando qual fosse o momento. Inclusive durante as famosas “Bodas de Caná”, narradas no Evangelho de João (quando Jesus transforma água em vinho), o Mestre não hesita em atender ao pedido de um necessitado, mesmo sabendo que “ainda não havia chegado a sua hora”. E Jesus nos manda o tempo todo amarmos uns aos outros como Ele nos amou. Essa disposição de ânimo altruísta que toma conta de nós na época do Natal deve nos acompanhar durante todos os dias de nossas vidas. O tempo de fazer o bem é o tempo presente. A hora de socorrermos nosso próximo é agora. E o nosso próximo é qualquer pessoa que esteja ao alcance de nossas mãos amigas. No Natal, nós devemos celebrar a esperança, o amor e o perdão que deveríamos exercer ao longo de todo o ano. A única diferença é que no Natal ninguém vai estranhar se fizermos isso fantasiados de Papai Noel.
 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

OLHAR PARA ALÉM DO ESPELHO


Quando eu olho o meu olho além do espelho
Tem alguém que me olha e não sou eu

(da canção "Além do Espelho", de João Nogueira e Paulo César Pinheiro)


Falar de nós mesmos no fundo não é nada além de dissecar os rótulos colados sobre nós ao longo de nossas vidas. Após retirarmos todos os rótulos um a um, nós os colocamos em prateleiras intelectuais, catalogando-os segundo critérios bem definidos socialmente. Sobra então apenas uma essência, mas essa nos é absolutamente intangível, e talvez constitua nossa verdadeira Alma, não sei ao certo. Não percebemos, ao fim das contas, que nossa totalidade é maior do que a soma de nossas partes. Somos algo além da mera adição das características adquiridas ao longo da existência.
Na maioria das vezes, nos tornamos tão identificados com o personagem criado a partir da sobreposição de nossos rótulos, que chegamos a confundir esse personagem com nossa essência, como se eles fossem ontologicamente criados junto conosco, e não fossem construídos ao longo de nossa trajetória pessoal. Afirmei isso incontáveis vezes. Mas algumas pessoas ultrapassam essa lógica, e identificam seus personagens com um único rótulo, um único aspecto da vida, ignorando ou mesmo negando todos os outros. São pessoas tão marcadas por seus rótulos, que eles chegam até mesmo a substituir seus nomes – e mesmo nomes não passam de rótulos, não podemos esquecer. Não temos mais o João, a Maria ou o Pedro. Temos em seus lugares o “flamenguista”, o “engenheiro”, o “crente”, ou qualquer coisa parecida. E acabamos por não perceber que cada João, cada Maria ou cada Pedro pode ser todas as coisas citadas ao mesmo tempo, e muitas outras. Raramente um rótulo exclui o outro.
Sendo assim, onde iremos encontrar o Rodrigo? Estaria ele no filho, no irmão ou no neto? Talvez no psicólogo? Quem sabe então no servidor público? No torcedor do Flamengo? No amante de uma Brahma gelada? No poeta? No tocador de viola caipira? No maçom? No cristão liberal? No roqueiro? No estudante de alemão? No comunista? Para ser sincero, em todos eles e em nenhum deles. Sou totalmente Rodrigo em todos esses aspectos, e em muitos outros – não citados apenas por questão de espaço – e ao mesmo tempo não me reduzo a nenhum deles. Sou na verdade um caleidoscópio, um mosaico de todos os rótulos adquiridos ao longo da vida. E tal como um caleidoscópio, cada movimento meu rearruma as diversas imagens, formando sempre imagens novas, caóticas no mais das vezes, é bem verdade. Mas ainda assim belas. E mesmo os rótulos já abandonados ainda me compõem. Não sou mais bancário, por exemplo, mas o fato de tê-lo sido um dia marcou meu ser de forma indelével, ainda faz parte de mim.
Portanto, ao serem perguntados acerca de mim, de quem eu sou, não respondam de modo a reduzir-me a um de meus muitos aspectos, a um único rótulo, ainda que para vocês ele pareça ser o mais marcante. Sou um conjunto único de fatores, e por ser único sou inominável. Apenas por conveniência, chamem esse conjunto de fatores de “Rodrigo” (pelo menos é isso o que se lê em meus documentos), e ao invés de tentar me dissecar, limitem-se a apontar o caleidoscópio que me dá forma.
Gosto dessa analogia do caleidoscópio porque ele se refaz a cada movimento. A cada giro, o caleidoscópio se transforma em uma pintura nova. Sem se mover, contudo, seria apenas uma imagem, um quadro estático. Poderia até ser belo, mas não teria vida, e estaria fadado a, cedo ou tarde, tornar-se um mero enfado, cobrir-se de poeira.
No final, sou uma soma de infinitos fatores: cada livro lido, cada canção ouvida ou cantada, cada imagem vislumbrada, cada palavra dita ou ouvida, cada poema escrito, cada sorriso aberto, cada lágrima derramada, cada beijo dado ou negado, cada pessoa conhecida, amada ou odiada, enfim, cada um desses elementos contribui com suas cores para a formação desse quadro complexo chamado EU. Quadro caleidoscópico, puro movimento, formando sempre novas imagens. E a cada dia, a todo momento, um novo pintor da vida acrescenta sua marca pessoal, seus tons e formas, e assim ajuda a compor meu quadro. Sou grato a Deus por todos eles.
            Agradeço a Deus não apenas pelas bênçãos concedidas, mas também por todas as tribulações permitidas. Mesmo o mais obtuso dos sofrimentos pode ser entendido como dádiva, quando ele se apresenta a nós como pedagogo, e nos ensina lições que de outra forma jamais poderíamos aprender. Às vezes, precisamos perder as nossas pernas para aprendermos a caminhar com o espírito. E mesmo o sofrimento é um pintor de quadros, e nos tinge com suas cores. Cores tristes, mas belas. Jamais nos esqueçamos: o cinza também é uma cor. Também tem sua beleza.
No lugar de me lamentar a cada intempérie, prefiro indagar a Deus sobre o propósito Dele em permitir que as coisas aconteçam dessa forma, e tenho a mais absoluta certeza de que mesmo o mais mortal dos sofrimentos contribuirá com a formação dessa obra de arte única de Deus chamada EU. E o mesmo pode ser dito de qualquer pessoa.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O RESPEITO ÀS DIFERENÇAS


Já não há mais culpado, nem inocente
Cada pessoa ou coisa é diferente
Já que é assim baseado em quê você pune quem não é você?
(da canção “Novo Aeon", de Raul Seixas, Claudio Roberto e Marcelo Motta)

“Quando você for elogiar a magnífica onça-pintada que o patrão caçou, muito cuidado: vai ver que o que ele acha o máximo da habilidade é caçar gambá” (Millôr Fernandes)


Dias atrás, estava eu na mesa do bar de um amigo, conversando com um grupo de pessoas. Comentávamos o recém acontecido casamento de um primo meu, do qual fui padrinho. Meu primo, (além de primo um de meus melhores amigos) sempre foi uma pessoa extremamente extrovertida, e isso muitas vezes fazia as pessoas não o levarem a sério. Muitos o achavam irresponsável, e apostavam que ele jamais seria alguém na vida. Mas em seu casamento, ele resolveu provar ao mundo que era alguém, brindando-nos com uma festa altamente extravagante. Na cerimônia, presença de quatro padres, e um festival de piadinhas, quase todas partindo do próprio noivo, como a simulação de uma crise de tosse na hora de dizer “SIM”.  Até mesmo os padres contaram suas anedotas. Tudo muito descontraído, as pessoas riram o tempo todo. E era uma cerimônia católica de casamento. Alguns, inclusive, consideraram desrespeitoso. A chegada dos noivos no salão de festas foi saudada pelos padrinhos (mais de vinte casais) portando velas acesas, formando um cortejo, enquanto o noivo explodia um tubo que arremessou um bocado de papel celofane picado para o ar. Tivemos ainda queima de fogos, música ao vivo (da qual os convidados que eram músicos puderam participar), e quase 500 litros de chopp, servidos em canecas de acrílico estampadas com a caricatura dos noivos, que os convidados levaram para casa, como recordação. Tudo isso, somados aos mais de dez anos de namoro do casal, tornou o evento o acontecimento do ano no bairro.
            Na mesa do bar, alguns diziam ter sido o evento um gasto de dinheiro inútil (e não foi pouco, diga-se de passagem). Haveriam maneiras mais inteligentes e úteis de gastar esse dinheiro, diziam. No fim, todos pareciam concordar que não apenas esta, mas toda e qualquer festa de casamento seria um gasto inútil de dinheiro. Até mesmo eu concordo com isso em larga medida, mas não demorou muito para uma das mulheres à mesa reclamar: “mas toda mulher sonha em casar de véu e grinalda”.  Por que razão as mulheres costumam dar tanto valor a coisas sem nenhum sentido prático? Flores, festas de casamento, poemas declamados, caixas de bombons, o mero reparar na mudança de um penteado, são todos fetiches altamente valorizados pelas mulheres, e tremendamente desprezados pelos homens. Nós, homens, só nos preocupamos com isso quando essas coisas se tornam “ferramentas”, quando nos ajudam a conquistar e/ou agradar as mulheres.
            Sempre existem exceções, mas em geral os homens valorizam as coisas pelo seu aspecto prático, racional, enquanto as mulheres se orientam por uma escala de valores afetivos. Já repararam como são freqüentes as situações em que um grupo simplesmente não consegue entender as motivações do outro, e quantas desavenças surgem exatamente dessa falta de compreensão? Isso só reafirma uma situação óbvia: homens e mulheres são diferentes, têm suas peculiaridades. Assim também as crianças, os idosos, enfim, cada indivíduo desse mundo tem suas particularidades, cada ente desse planeta (e de qualquer outro, até onde sei) é um ser único, inimitável, que jamais vai se repetir. E estas singularidades devem ser, antes de tudo, respeitadas, mesmo se nos parecerem estranhas, de mau gosto, loucas, ou até mesmo ridículas.
            Em geral, a sociedade elege um conjunto específico de características, gostos e hábitos como sendo o padrão, como “o correto”, “o jeito saudável de ser”, como aquilo que define as “pessoas legais” (aquelas que você nunca pode deixar de convidar para sua festa, especialmente se você quiser a presença de alguns paparazzi). O mercado de trabalho faz a mesma coisa ao criar o estereótipo do “bom profissional”. Todo mundo então passa a viver tentando se moldar a esses estereótipos, numa busca neurótica por aceitação social, por sucesso na vida, por um lugar em seu grupo social. Assim, nós queremos sempre nos vestir com as cores da moda, ouvir as canções da moda, assistir aos filmes da moda, comer os venenos com gergelim da moda, enfim, queremos fazer tudo o que fazem as pessoas que estão na moda. “Eu tenho que fazer isso porque as pessoas legais fazem isso, e eu também quero ser visto como uma pessoa legal”. Essa voz de comando povoa o inconsciente de quase todos nós. Apenas não costumamos nos dar conta disso, não temos consciência de sermos assim. Mas é uma voz praticamente onipresente, o tempo todo guiando nossas ações.
Os meios de comunicação exercem um papel crucial nesse processo, vendendo ao público imagens, sonhos, metas e desejos, quase sempre ilusórios, inatingíveis. A mídia fabrica incessantemente esses estereótipos, invadindo todos os dias nossa privacidade, e sussurrando em nossos ouvidos palavras sobre como devemos ser, como devemos nos comportar, do que devemos gostar e não gostar. Esse processo de massificação é mais profundo entre os jovens e adolescentes, por esses estarem ainda formando suas personalidades, e por serem os grupos etários mais suscetíveis às questões de aceitação por parte de seus grupos sociais. Permitam-me dar um exemplo ilustrativo: uma determinada atriz de TV aparece num programa de auditório dominical usando um corte de cabelo ou uma roupa nova, e dias depois todas as mulheres a estão imitando, inconscientemente esperando que isso as torne tão glamorosas como a atriz. Não tem a menor importância se uma semana atrás aquele corte de cabelo ou aquela roupa fossem considerados de péssimo gosto; agora eles se tornam o último grito da moda. Se a atriz estiver protagonizando algum personagem importante de novela nesse momento, a coisa será ainda mais gritante. E afinal, o que mudou? Mudou o gosto das pessoas? Não, mudou tão somente o fato de alguém famoso, formador de opinião, dizer que é legal.
Mas o que acontece com as pessoas que são se adéquam a esses padrões sociais? Esses só são convidados para as festas por uma questão de obrigação, de boas maneiras. Em geral eles são postos de lado, censurados por seu jeito de ser, e frequentemente admoestados o tempo todo a mudarem de atitude, a se moldarem conforme os padrões, a serem como todo mundo. “Desse jeito, ninguém vai gostar de você!”, ouvimos esse conselho desde a nossa infância. Esses indivíduos ganham a alcunha de esquisitos, excêntricos, ou até de loucos. E qual a solução para essas pessoas? Muitos acabam se juntando a outros indivíduos cujos gostos são parecidos com os seus, e assim formam guetos, chamados hoje de “tribos” pelo jargão politicamente correto. Outros acabam vivendo suas alteridades de forma tão intensa e violenta, que acabam por enlouquecer mesmo, literalmente, e no fim são “tratados”, para voltarem a ser como todo mundo. O que são as mais variadas terapias psiquiátricas e psicológicas senão um processo de formatação, de adequar o indivíduo aos padrões socialmente aceitos? Por fim, alguns desistem de serem eles mesmos, para vestir a camisa dos “socialmente corretos”. O preço disso é a eterna tensão de viver um personagem com o qual não se está identificado. Essa tensão está na base de uma série de neuroses, mas uma vez que elas são oriundas do modo de vida consagrado pela sociedade, imposto a um sujeito que não se adapta a viver desse jeito, essas disfunções passam a ser entendidas por todos como coisas normais, meros efeitos colaterais da pós-modernidade. Acabam então sendo atribuídas a fatores outros como “o stress do dia-a-dia”, ou coisas do gênero, o que até confere ao indivíduo uma certa aura de heroísmo, por ele ser visto como uma vítima das conseqüências do estilo de vida moderno. E essa vitimização no fim compensa o preço pago. “Eu vou pagar a conta do analista, para nunca mais ter que saber quem eu sou”, dizia Cazuza. Quantos não preferem pagar o preço?
E o que torna tão difícil para as pessoas “normais” aceitarem e conviverem bem com quem é “diferente”? A resposta é simples: adequar-se aos padrões socialmente consagrados confere ao indivíduo um sentimento de aceitação, dá a ele uma imagem de pessoa querida, de que todas as pessoas o amarão, e irão querê-lo por perto. Garante o sentimento de pertencimento ao seu grupo. Nossa sociedade vende essa idéia como o ideal de felicidade; o indivíduo é violentamente convencido de que ser feliz é pensar como todo mundo, freqüentar os lugares que todos freqüentam, dançar e cantar as mesmas músicas, beber a mesma bebida, vestir o mesmo tipo de roupa. Resumindo: ser feliz é ser aceito. E para ser aceito por todos, é preciso ser como todos são. Afinal, esse é o raciocínio lógico: se essa é a opção da maioria, deve ser a melhor opção. Ninguém percebe que esses padrões são socialmente construídos, tendo muitas vezes como motivação o consumo, vender novos estilos de vida, e com isso novos produtos, mover a mola do capitalismo, criando demandas, produzindo desejos. Um novo estilo musical, por exemplo, se torna febre porque a mídia nos convence disso, independente da qualidade desse estilo musical.
As pessoas se agarram com unhas e dentes a essa idéia, e esta passa a dar sentido a suas vidas. Elas se convencem de que só serão felizes se forem aceitas pela sociedade, e só serão aceitas caso se comportem da forma como a sociedade determina. Só assim é possível ser feliz, não há uma alternativa, um “plano B”. O que fazer, então, quando estamos diante de alguém que simplesmente não segue nossas regras, mas ao mesmo tempo mostra-se muito feliz, em muitas ocasiões parece até mais feliz do que nós? Eis aqui a raiz do problema: a alteridade, a diversidade, o fato de alguém conseguir viver guiado por valores diferentes dos nossos, e ainda assim viver feliz, nos força a relativizarmos nossos próprios valores, nosso próprio conceito de felicidade. Faz-nos ter de admitir que essa afirmação de que a felicidade só é possível para quem vive como nós é simplesmente falsa. E como muitas pessoas preferem simplesmente não ver os seus problemas a encará-los, muitos preferem discriminar, deixar de lado a alteridade, não precisar conviver com ela, tirar a diferença do campo visual, tentar fingir que as diferenças não existem. Para não ter de admitir que minha receita de felicidade não é a única, e talvez nem seja a mais eficaz, eu acabo extirpando de meu convívio quem possui outras receitas. Muitos pensam assim. E pior, agem assim.
Claro que toda moeda possui duas faces. Não estou aqui fazendo uma apologia à subversão ou à diferença. Muito menos quero obrigar quem se adéqua bem aos padrões da sociedade a mudar, a tornar-se diferente. Cada um tem o direito de ser como quiser, de viver como bem entender. Assim como seguir as normas sociais não garante a ninguém a felicidade, ser diferente também não o faz. Muita gente se esconde em guetos, assume alteridades, apenas porque não consegue tanta aceitação quanto deseja fora desses guetos. Sem conseguir sucesso entre os “normais”, muitos deles se fingem de “diferentes”, para serem aceitos pelos “diferentes”. Isso é o mesmo que viver tentando se adequar aos valores socialmente consagrados, e produz neuroses do mesmo jeito. Não há nenhum valor real em se abandonar uma posição extremista em favor de outra tão radical quanto.
Meu apelo é apenas para que olhemos para quem é diferente exatamente como ele é, e não mais do que isso: como alguém diferente. Mas como alguém. Ser humano como nós, digno como nós, com direitos e deveres como nós. Tentar moldar as pessoas aos nossos padrões é violência psicológica, uma das piores formas de violência que podemos ter para com nosso semelhante (ou nosso “dessemelhante”), Não aceitar suas diferenças é discriminação. Tentar extirpar a diferença de nossa vida é ilusão. E ser feliz é ser como se é, e não como querem que sejamos. Não importa quem queira isso.

sábado, 27 de novembro de 2010

Perguntas Que Não Querem Calar ou O Rio Pede Paz!


           O estado do Rio de Janeiro vive já há quase uma semana um drama conhecido por todos. Facções criminosas estão começando a reagir à nova política de segurança implementada pelo estado, que expulsou muitos traficantes de suas favelas (que me perdoem os politicamente corretos, mas chamar favelas de comunidades lembra um amigo meu, quando ele diz que um cara bonitinho é simplesmente um cara feio bem vestido). Em cumprimento a ordens saídas de presídios de “segurança máxima”, vindas de conhecidos chefões do tráfico, diversos criminosos, em vários pontos do estado, e de forma aparentemente desordenada, começaram a espalhar o terror, incendiando carros, caminhões, vans e ônibus. Apenas os veículos foram atingidos, nenhum centavo sequer foi roubado das pessoas. Um claro gesto político, efetuado por bandidos tentando mostrar ao mundo que estavam reagindo, que tinham algum poder.
           O governo do estado tomou imediatas providências, e numa operação histórica, onde a polícia militar contou com  a cooperação das outras polícias e das forças armadas, a favela que concentrou o maior número de ataques foi rapidamente ocupada, até com certa facilidade. Digo histórica porque pela primeira vez uma operação deste tipo foi comandada não pelas forças armadas, mas pela própria Polícia Militar. Aliás, é como deve ser. A Polícia Militar é quem mais entende de operações dessa natureza. Câmeras de TV mostravam o tempo todo criminosos fugindo desesperados, com a clara intenção de demonstrar como eles são despreparados, e não têm a menor chance em confrontos de igual para igual com as autoridades.
           O que teria levado os criminosos a essas ações é óbvio. O Rio de Janeiro está definitivamente inserido no contexto mundial, pelo fato do Brasil ter sido escolhido como sede da Copa do Mundo de 2014, e pelo próprio Rio de Janeiro ser a sede dos Jogos Olímpicos de 2016. A intenção dos criminosos era claramente sujar a imagem do Rio de Janeiro diante do mundo, em protesto contra a ocupação das favelas pelas UPPs. Eles sabem que os olhos do mundo estão se voltando cada vez com mais freqüência para a cidade. Inclusive, um dos canais de documentários de TV a cabo, não me recordo qual, lançou uma série sobre o Rio de Janeiro, onde se discute as reais condições da cidade para sediar eventos dessa magnitude. E a segurança pública é o foco da série.
           Com minha rotina virada de cabeça para baixo, não pude deixar de tecer alguns questionamentos acerca desses problemas. O primeiro vem de uma indagação que tenho feito desde quando comecei a discutir o modelo das UPPs. Será que o governador achava que os traficantes expulsos de suas favelas iriam miraculosamente se regenerar, e começar a vender amendoim ou picolé na praia? Quando se tira um traficante da favela onde ele tem seu “negócio”, e ele não é preso ou morto, ele tem de ir para algum lugar. E logicamente ele vai se juntar a traficantes de outras localidade pertencentes à mesma facção dele, e vai tentar se reorganizar. Para isso eles podem invadir favelas dominadas por facções rivais, ou mesmo começar a praticar outros crimes, com o fim de levantar fundos para retomar suas atividades de tráfico. Ou seja, apenas expulsar os traficantes das favelas não resolve o problema, apenas o transfere de lugar. Mas o governador, que atua mais como se fosse prefeito da capital do que como governador mesmo, está interessado muito mais em “limpar” as regiões onde os futuros megaeventos terão lugar, do que em realmente combater o crime. A segurança pública é de importância secundária.
           Outra importante questão: toda vez que a polícia realmente quer, ela domina totalmente o tráfico. O traficante recebe uma arma tão logo passa a ter forças para carregá-la, e vai para o tráfico sem o menor preparo, enquanto o policial recebe treinamento, e está muito mais preparado para o confronto. O tráfico é covarde, e só parte para o conflito em situações de clara vantagem numérica. Jamais eu soube de um traficante encarar um policial numa situação de igual para igual. Sempre afirmei isso, e a imprensa destacou muito esse fato, mostrando centenas de traficantes batendo em retirada desesperados, diante de um grupo bem menor de policiais. Então a pergunta que não quer calar: se o crime organizado não é tão preparado, como muitos supunham, se a polícia é tão superior assim, por que cargas d’água essas ocupações não foram realizadas antes? Por que nunca tivemos antes essas ações coordenadas entre as polícias civil, militar, federal, e as forças armadas, com as pessoas certas no comando? Se realmente é assim tão fácil, como a imprensa nos fez ver, isso poderia ter sido feito há muito tempo. E novamente a resposta vem do fato da segurança da população ser coisa de menor importância. Assim como os traficantes começaram a baderna para mostrar ao mundo a falta de condições do Rio de Janeiro para sediar Copa do Mundo e Jogos Olímpicos, nossos governantes agiram para tentar provar ao mundo o contrário.
           Sempre deixando um rastro de verdadeiros mártires do descaso de nossas autoridades, inocentes mortos, feridos, ou com prejuízos de ordem material, esses acontecimentos, no fim, só nos levam a uma triste constatação: boa parte de nossos problemas sociais são questões mais simples e mais fáceis de serem resolvidas do que muitos de nós pensávamos, e do que nossas autoridades tentam o tempo todo nos fazer crer, apoiados por uma imprensa sem nenhuma imparcialidade, subserviente aos nossos governantes, vendida aos interesses do grande capital, e mais interessada em vender um espetáculo do que em realmente informar a população. O que falta para nossos governantes realmente resolverem esses problemas? Apenas VONTADE POLITICA!

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A ARTE DE PERGUNTAR "POR QUÊ?"


Os pecados são todos meus
Deus sabe a minha confissão
Não há o que perdoar
Por isso mesmo é que há de haver mais compaixão
(da canção “Drão”, de Gilberto Gil)


Os últimos acontecimentos de minha vida me ensinaram muito. Fui privado de tanta coisa, e a cada novo golpe da vida eu me percebia tal como uma espada, sendo pacientemente forjada pelo Grande Ferreiro do Universo. Golpes duros, fortes, mas precisos, e necessários para dar forma à espada. Sem eles, ela perderia o fio amolado.
O Mestre disse certa vez duas frases, conhecidas como a Regra de Ouro: Ele nos advertiu para não fazermos aos outros as coisas que não gostaríamos que fossem feitas a nós, e nos aconselhou a fazermos aos outros as coisas que gostaríamos que nos fizessem. Na verdade a mesma máxima, escrita com redações opostas. Uma subentende a outra.
            Às vezes um axioma é confirmado não por sua realização, mas exatamente por ele não se concretizar. E assim fui sendo forjado, aprendendo a jamais negar, a quem quer que seja, qualquer coisa de que fui privado ou privei os outros. Por não compreender e não ter sido compreendido, aprendi a ser compreensivo. Por não dar e não receber compaixão, aprendi a ser compassivo. Por não perdoar e não ter sido perdoado, aprendi o valor do verdadeiro perdão. Por ver em mim mesmo e em todo lado rancor e mágoa, aprendi a esquecer. Por cobrar demais dos outros e por ter sido cobrado de coisas acima de minha capacidade, aprendi a não exigir nada de ninguém. Por ser ignorado e por ignorar, aprendi a não esquecer as pessoas. Por me terem feito chorar, e por ter feito tanta gente chorar, aprendi a sorrir, e a tentar levar os outros sempre a sorrir. Por ter sido deixado na solidão, e por abandonar quem precisava de mim, aprendi a não deixar ninguém sozinho. Por não ter sido amado de verdade, e por muitas vezes não traduzir em atos o amor que senti, aprendi o quanto devo amar. Por eu ser injusto exatamente tentando ser justo demais, e por terem sido injustos comigo, aprendi que não devo jamais faltar com a justiça para com ninguém.
            As pessoas frequentemente se apegam a coisas nas quais elas querem acreditar, independente de serem ou não verdadeiras. Mesmo eu não escapo disso, e talvez esteja apenas criando minha própria ilusão, a fim de entender os caprichos de um destino cego, ou mesmo para tentar me isentar da culpa pelos meus atos. Mas isso só muda minha compreensão dos acontecimentos, e não tem qualquer relação com o fato de eu carecer de compreensão, de compaixão, de perdão, ou pelo menos de justiça. Preciso e careço de não ser deixado em minha própria solidão, e preciso muito, mas muito mesmo, não ser cobrado para além de minhas capacidades. Fiz algo para merecer qualquer dessas complacências? Isso nem importa: pelo simples fato de ser humano, de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, e de sofrer todas as mazelas da condição humana, mereço ser tratado como gente.
            Certos atos são tão simples, e ao mesmo tempo são inacreditavelmente difíceis de serem executados. Compreensão, por exemplo. Buscar entender, colocar-se no lugar do outro, é o ponto de partida para todos os outros gestos de amor, é a base para toda ação realmente transformadora. Tendemos a explicar as coisas segundo nossos valores, retirando de nossos arsenais de respostas prontas soluções para tudo e para todos. Mas precisamos atirar fora essa capa de preconceito, para em seguida dizermos a palavra mágica: “por quê?”. Talvez com isso, mesmo o ato aparentemente mais insano de nosso semelhante comece a fazer sentido. Que motivação o levou a fazer o que fez? Essa indagação deve sempre passear por entre nossos lábios e mentes. Mas a resposta para ela deve vir não de nossas suposições, mas diretamente do coração de nosso semelhante. E para isso nós precisamos ouvi-lo, precisamos abrir nosso coração através de nossos ouvidos, ainda que o que venhamos a ouvir possa ser estranho, ou mesmo nos machucar. Entendendo nosso semelhante, podemos nos identificar com seu sofrimento. Perdoamos com mais facilidade. Tendemos a ser mais compassivos.  Temos mais chances de ser justos.
            Uma coisa deve ficar clara: entender de forma alguma significa concordar. Entender o outro é tão somente absorver a sua lógica, saber por que o outro fez o que fez. Não devemos compactuar com o erro; na verdade, temos inclusive o dever de combatê-los. Mas sempre devemos combater esse bom combate com a consciência de que poderíamos ser nós cometendo aquele erro, e nesse caso, como gostaríamos de ser tratados? Agir diante do erro alheio da forma como gostaríamos que agissem conosco em igual situação é agir com compaixão.
            Compaixão. Significa literalmente “sofrer junto”. O maior exemplo de compaixão já visto pelo mundo, para mim, foi o de Jesus Cristo. Diz o texto bíblico que em Jesus, Deus se esvaziou de sua divindade, para sentir todo o sofrimento humano em seu próprio ser. Ao gritar “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”, pendurado na cruz, o Mestre vivenciou da forma mais horrenda o absurdo da existência, o total desamparo, total solidão. E Jesus nos orienta a amarmos uns aos outros, da mesma forma como Ele nos amou. O cumprimento desse mandamento também implica em sermos compassivos, em nos identificarmos com o sofrimento do próximo.
            Percebo com pesar ser essa uma disposição de ânimo tão rara entre as pessoas. Eu mesmo sempre defendi esse ponto de vista em nível teórico, mas precisei de uma das lições mais dolorosas de minha vida para começar a colocar isso em prática. E mesmo assim, não o faço como imagino que deveria; o velho homem em mim ainda se debate, tentando seus últimos esforços para se manter vivo, soltando gritos de agonia. Lutero dizia que a vida do cristão deveria ser uma eterna penitência, dada a nossa incurável tendência para o erro. E enquanto eu for humano nesse mundo preciso de compreensão e compaixão. De dar e receber compreensão e compaixão.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

EU PREFIRO SER ESSA METAMORFOSE AMBULANTE





E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar
Não tem tempo, nem piedade
Nem tem hora de chegar
Sem pedir licença, muda a nossa vida
E depois convida a rir ou chorar
(da canção “Aquarela”, de Toquinho, Vinícius de Moraes, G. Morra e M. Fabrizio)

Certa vez, Raul Seixas disse que tinha inveja dos atores, pois esses viviam um personagem diferente a cada trabalho, enquanto ele havia sido confinado a um único personagem chamado “Raul Seixas”. Em minhas muitas andanças por aí, costumo sempre observar as pessoas, olhar em cada rosto, para ver se descubro algo desse universo tão diversificado chamado ser humano. Olhar as pessoas e se indagar como elas são, o que fazem, como vivem, é um exercício fascinante, recomendo a todos. Inúmeras pessoas passam por nós todos os dias, e cada uma delas possui sua identidade, sua história. Todas únicas, irrepetíveis. São verdadeiros livros, filmes e documentários ambulantes, quase todos sem ninguém para realmente apreciá-los.
           Tenho por vezes a sensação de que a maioria das pessoas pensa de forma diametralmente oposta a Raul Seixas. Em geral, nós criamos um personagem para nós mesmos, nos identificamos com ele, e nos apegamos a ponto de esquecermos que se trata apenas de um personagem. E digo criamos um personagem mais por força de expressão. Na verdade, esse personagem é criado por um emaranhado de forças de diferentes origens. São fatores biológicos, históricos, psicológicos, sociais, emocionais, espirituais, e se formos colocar na ponta do lápis, nossa participação nisso é até pequena. Raul Seixas estava certo: ele não se confinou em um personagem, ele foi confinado.
           Desde nosso nascimento, começamos a receber uma série de “cascas”, que são postas sobre nós como tinta sobre uma parede branca. Essas cascas vão se sobrepondo umas às outras, esculpindo-nos em formas variadas. Já nascemos com uma série de características biológicas, e logo depois nos é dado um nome (e ninguém pergunta se concordamos com a escolha). Depois vêm as outras cascas: um time de futebol para torcer, uma formação intelectual, uma profissão, família, amigos, convicções políticas, religião, hábitos, manias, e assim sucessivamente. Por fim, damos a esse conjunto de cascas sobrepostas o nome de “EU”. Essa “armadura” adere tão fortemente a nós, que sequer percebemos tratar-se apenas de rótulos, contingências de nossa história pessoal, acidentes de percurso. E se analisarmos bem, quantos desses rótulos foram realmente escolhas nossas? Provavelmente nenhum deles.
           O conjunto dessas cascas, desses rótulos, forma o personagem confundido por nós como sendo nosso eu. Essa confusão é reforçada pelo fato dessa sobreposição de cascas ser virtualmente impossível de ser repetida, dado o número de variáveis envolvidas. Isso confere uma identidade única ao nosso personagem, e acaba nos fazendo pensar em nossos rótulos como sendo parte de nossa essência, como algo inerente ao nosso ser. Somos tão profundamente imersos em nossos personagens, que sempre que somos convidados a falar de nós mesmos, acabamos por apenas dissecá-lo, separando uma por uma as cascas que o compõem.
Sobre nossa essência em si, não somos capazes de dizer nada. Muitos inclusive comparam o homem com uma cebola. A cebola não possui um caroço, um núcleo, e nada mais é do que uma sucessão de cascas sobrepostas. E quando as retiramos todas, o que sobra? Nada. Na verdade, não somos capazes de falar de nossa essência porque não há como se dizer nada de concreto a seu respeito, uma vez que a ela é pura potencialidade, puro “poder-vir-a-ser”. Mas parece que os psicólogos e os budistas são os únicos a compreenderem isso. Tampouco temos meios para atingir nossa essência. Podemos apenas tirar proveito da noção dela, tentando não ficar tão presos ao nosso personagem. Da mesma forma como as cascas nos foram colocadas, elas podem ser retiradas, trocadas, ou podemos apenas acrescentar outras mais. Assim, ficaríamos libertos da prisão de sempre ter que agir em conformidade com nosso personagem. Frases como “Isso não é atitude de alguém de sua classe!” não fariam mais sentido algum.
           Obviamente, sempre existe o outro lado da moeda. Se por um lado a maioria de nós fica restrita a um número muito limitado de rótulos aglutinados em um único personagem, por outro a pós-modernidade, com seus mais diversos pluralismos, gera pessoas com verdadeira fobia a qualquer tipo de rótulo. Gente que troca de aparência física, de ideologia, de religião, de gostos musicais, como se troca de roupa. A alegação é sempre a mesma: “eu não sou preso(a) a rótulos”. Pura ilusão. Na verdade, são pessoas tão presas a rótulos quanto qualquer um, apenas com uma particularidade: são pessoas presas a um único rótulo, que é justamente o rótulo de não ter rótulos. E mesmo a constante mudança de rótulos tem um forte componente social. Em geral, se abraça um rótulo quando este é exótico, quando destaca o indivíduo na multidão. E esse mesmo rótulo costuma ser abandonado quando começa a se tornar padrão, quando se torna lugar comum vê-los em outras pessoas. Não há como negar: isso proporciona uma forte impressão de autenticidade, e de uma identidade bem marcada. Faz as pessoas se sentirem “diferentes”, “especiais”. Mas também é uma ilusão.
           Ao fim das contas, uma coisa parece clara: como nossa essência é pura potencialidade, ela só pode se expressar no mundo através das cascas (Jung preferiria chamá-las de personas, máscaras). Não é livre quem vive preso a um único personagem, mas também não o é quem vive preso a trocar de personagem o tempo todo. Sendo assim, qual a saída? Seria a instauração do segundo grande paradoxo: da mesma forma que devemos viver como se fôssemos morrer amanhã e ao mesmo tempo fôssemos viver para sempre, precisamos vivenciar nossos personagens em toda sua intensidade, sem contudo nos apegarmos a qualquer um deles. Apenas a título de ilustração, há menos de dois anos atrás, eu era casado, morava em Itaboraí, e trabalhava no Banco Itaú. Hoje eu sou solteiro, moro em São Gonçalo, e trabalho na UFRJ. Quase nenhuma dessas mudanças foi escolha minha, e o que seria de mim se eu estivesse apegado ao meu antigo personagem? Como desenvolver de forma sadia o novo? Sem dúvida, não haveria como. Eu seria apenas um zumbi, um ser sem alma, vagando à procura de um fantasma, um ser já há muito falecido. Quantas pessoas assim cada um de nós não conhece?
           Num ponto dou razão ao budista. A maioria de nossas mudanças ocorre à revelia nossa, não são escolhas conscientes. E uma Paz de espírito verdadeira (Paz com “P” maiúsculo, não a calmaria, que também é ilusão) advém exatamente quando nos tornamos capazes de transitar por essas mudanças, colaborando com elas sempre que pudermos e quisermos, quando tomamos consciência de que não temos total controle do processo, e muita coisa acontece independente de nossa vontade, mas principalmente quando conseguimos não nos apegar a nenhum dos personagens criados.
           Apenas depois de termos consciência de que tudo o que pensamos ser, e tudo o que o mundo pensa que somos, não passa de meros rótulos impostos a nós por nossas histórias pessoais, podemos realmente tentar olhar para dentro de nós, e assim conseguir enxergar nosso verdadeiro eu. Do contrário, veremos apenas máscaras.
           

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

DEUS, O ATEU E O ARQUIVERSO



         
Dentre as muitas críticas feitas pelos ateus à religiosidade, uma delas merece, em minha opinião, ser levada muito a sério. Os homens, dizem eles, criam deuses à sua própria imagem e semelhança.
Existe no ser humano uma aversão natural, atávica mesmo, à ignorância. Nas crianças, esse sentimento é facilmente observável. Quando fazem uma pergunta, as crianças não aceitam ficar sem resposta. Basta responder a qualquer pergunta feita por uma criança com um “não sei”, ou algo parecido, e ela mesma tratará de responder, ainda que para isso tenha que inventar a reposta. E curiosamente, mesmo a reposta inventada da criança a faz se dar por satisfeita. A criança crê em sua própria invenção.
 Ateus e agnósticos fazem coro em concordância com a idéia expressa acima, e vão mais além. Para ambos, essa dificuldade em aceitar ficar sem resposta não é exclusividade do mundo infantil. Adultos também inventam respostas para suas angústias, e crêem nelas. Crêem ao ponto de serem capazes de matar e morrer por elas. Os mais variados fundamentalismos são provas indiscutíveis desse fato.
 Diante do absurdo da vida, tão bem retratado pelos filósofos existencialistas, diante da falta de sentido para o mundo, e da inevitabilidade da morte, dizem os ateus e agnósticos que o homem inventa deuses, paraísos, vidas eternas, e com isso cria a religião. Tudo para dar conta da falta de resposta para as perguntas essenciais da metafísica: “quem somos?”, “de onde viemos?”, “para onde vamos?”, “por que existimos?”, entre outras. A vida e a morte, esses dois pontos de interrogação desafiadores, dos quais não somos capazes de dizer coisa alguma de forma segura, ganham então os mais variados contornos, diferentes formas para o mesmo conteúdo. Para a maior parte do pensamento religioso, há um ser todo-poderoso. Este ser criou o universo e o homem, e vai presenteá-lo com uma vida eterna de felicidade. Para isso o homem precisa tão somente seguir as regras criadas por esse ser. E normalmente essas regras são impostas por pessoas tidas como representantes desse ser na Terra. Nesse ponto o ateu brada: esse ente, chamado Deus pelos crentes, não passa de uma projeção dos anseios mais íntimos do homem, e no fim só serve para legitimar ações de poder. O agnóstico apenas sorri: para ele essas são questões para as quais simplesmente não existem soluções. Ele parece ser o único tipo de gente capaz de conviver com a ausência de respostas. Ou pelo menos tenta.
Soberbos por definição, ateus e agnósticos consideram toda forma de religiosidade uma mera superstição, resquícios de pulsões infantis, coisa de homem primitivo, ignorante (está aí Freud, que não me deixa mentir). O homem moderno já deveria ter superado isso há muito tempo. Afinal, tudo no universo pode hoje ser explicado em termos de relações naturais de causa e efeito, graças à maravilhosa ciência. A meta é fazer o conhecimento científico substituir de uma vez a obsoleta e nociva religião, e assim poderíamos inaugurar o paraíso na Terra mesmo. Para quê esperar o céu, afinal?
Mas a ciência não descreve o mundo exatamente como ele é; apenas produz modelos de compreensão do funcionamento do universo. Esses modelos teóricos são sempre indiretos, obtidos a partir de métodos matemáticos e de instrumentos de medição. Explicam a natureza por analogia. Uma teoria científica é aceita quando seus cálculos prevêem um resultado idêntico ao observado na natureza, ou pelo menos suficientemente parecidos, a ponto de podermos desprezar as diferenças. Mas isso não prova que a natureza opera segundo as mesmas regras. Pode ser apenas uma questão de coincidência. E mais importante: a ciência descreve como o mundo funciona, mas não se indaga POR QUE o mundo existe. Não há questionamento sobre a finalidade da criação. O cientista se contenta em dizer que o universo é fruto de um mero acaso, apenas pelo fato de não ser possível comprovar cientificamente o contrário. Mas isso também não seria uma resposta inventada para a angústia de uma pergunta não respondida? Não seria a ciência uma religião, tendo esse tal de “ACASO” como Deus?
Para o cientista, todo evento que ocorre no universo é decorrente de uma causa anterior, e essa causa é efeito de uma outra mais anterior ainda, e assim sucessivamente, até chegarmos ao instante da criação do universo. Aí surge o problema: se o universo foi criado em dado momento, e se todo evento é efeito de uma causa anterior, então o universo precisa de uma causa exterior a si mesmo para poder vir à existência. Para a própria ciência, a massa que hoje compõe o universo estava toda aglutinada em um único ponto, e permaneceria assim, não fosse algo perturbar seu equilíbrio e fazer tudo explodir. Teoria famosa, conhecida como o Big Bang (a Grande Explosão). Mas o que quer que tenha perturbado o equilíbrio da matéria e provocado a explosão, também é efeito de uma causa anterior, sua causa também o é, e assim ficaríamos condenados a sempre voltar um pouco mais, de causa em causa, sem jamais chegar ao fim (na verdade ao começo, à causa que não teve causa). A não ser que admitamos que algo fora do universo, sem uma causa natural, tenha iniciado o processo. A ciência chama isso de Singularidade, e Einstein não hesitou em chamar de Deus.
Para se livrar do incômodo da singularidade, o obstinado cientista, aplaudido de pé pelo ateu e pelo agnóstico, criou uma teoria bizarra, no melhor estilo “sci-fi”: não haveria apenas um, mas muitos universos, multiversos convivendo lado a lado, todos diferentes versões da mesma matriz, réplicas de nosso universo com algumas modificações. Inclusive, existiriam vários “eus”, um em cada um desses universos, e em alguns eu poderia até mesmo nem existir. Nesse universo, por exemplo, sou autor de blog, mas em outro posso ser soldado nazista, em outro stripper de boate inferninho, naquele outro uma tartaruga ninja, enfim, posso ser tudo, ou pelo menos posso ser tantas coisas quantos universos existirem. Esses caras não estão lendo quadrinhos da Marvel e DC Comics demais?
Contudo, o próprio cientista afirma ser impossível provar a teoria do multiverso. Ela seria um modelo teórico, o mais aceito pela atual astrofísica, apenas por conseguir prescindir de qualquer singularidade. Traduzindo, a teoria do multiverso é tão cientificamente improvável (no sentido de não poder ser provada pelo método científico) quanto qualquer religião. Mas ela é aceita apenas por permitir ao cientista excluir a hipótese de Deus.
Na verdade, toda essa verborrágica não passa de um jogo semântico. A ciência antes definia o universo como a totalidade do mundo material, e hoje ela o define como apenas uma parte dessa totalidade. Todavia, nós podemos pensar em todos os multiversos juntos como uma totalidade ainda maior, e dar um nome para isso. Sugiro “ARQUIVERSO”. E aí trazemos de volta o velho problema da singularidade. Que causa externa ao arquiverso provocou sua criação? E se a ciência disser que existem muitos arquiversos, podemos simplesmente repetir a operação. Precisaremos apenas de um nome novo.
O método científico tem seus limites, e a ciência, desde o surgimento da Física Quântica, parece já estar à beira de atingi-los, como bem frisou o famoso astrofísico Fritjof Kapra, autor de best-sellers como “O Tao da Física” e “O Ponto de Mutação”. Não é honesto um cientista proclamar válida uma teoria que ele mesmo admite não ser capaz provar cientificamente, apenas pelo fato dela lhe permitir jogar Deus para escanteio. A crença em Deus nunca foi empecilho para a ciência, muito embora as religiões organizadas o sejam por diversos momentos. Mas crer em Deus e ter uma religião não são a mesma coisa.
Se por deus entendemos entes que adoramos, aos quais servimos, e nos quais cremos de forma cega, existe uma miríade de deuses passeando pelo mundo. Pode ser o poder, ou o dinheiro, o sexo, a pessoa amada, a igreja ou outra instituição, e assim vai. Até a ciência possui a sua própria divindade, e ela se chama ACASO, como demonstramos em linhas anteriores. Mas entender DEUS como o princípio pelo qual todas as coisas vieram à existência é uma necessidade. No primeiro capítulo da Epístola aos Romanos, versículo 20, Paulo, falando dos gentios, que não conheciam o Deus judaico, afirma: “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis”. Para Paulo, a criação era a prova mais contundente da existência do Criador, e mesmo os gentios deveriam ser capazes de reconhecer esse fato.
Não é possível provar a existência de Deus pelo método científico, mesmo porque a ciência trabalha fazendo recortes do universo; se não agisse assim ela sequer poderia definir seus objetos de estudo. Nenhum recorte finito é capaz de conter o infinito, e Deus é infinito por definição. A ciência não é capaz de estudar Deus por seu método, não prova que ele existe, mas também jamais provará o contrário.
Vejo Deus como Paulo, estampado na criação, nessa maravilha que é o universo. Não consigo ver toda essa complexidade como simples fruto de um acaso cego. Como dizia o importante psicólogo C. G. Jung, “eu não acredito em Deus, eu SEI”. Todos os sistemas de crença de todas as religiões são meras conjecturas, e eu mesmo admito ser cristão por um ato claro de fé. Reconheço a presença de Deus em todo coração sincero, independente de sua religião. Vejo Deus até mesmo no cientista adorador do Acaso. E sequer me dou ao trabalho de tentar demonstrar a superioridade do cristianismo, e apenas prego a Cristo.
Todas as religiões, mesmo o cristianismo que eu professo, são hipóteses. Deus é um fato.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

OBRIGADO, BRASIL!



          Depois de séculos de colônia, de impérios cujos tronos eram ocupados por portugueses, de repúblicas de café com leite, de ditaduras civis e militares, de neoliberalismos que só trabalhavam para o capital especulativo, o Brasil finalmente prova que mudou.
           Acostumamo-nos a sermos governados por gente de nossas elites. Vimos, ao longo de 500 anos, nossa terra ser saqueada, e nossas riquezas serem escoadas descaradamente para fora de nossas fronteiras. Vimos nossa força de produção, empresas estatais, cujo verdadeiro dono era o povo, e que davam lucro, serem vendidas a preço de banana para o capital estrangeiro. Vimos setores estratégicos de nossa economia terem seus monopólios estatais transformados em monopólios privados. Vimos nosso país ser transformado em uma mistura de  cassino com paraíso fiscal.
           Então um dia apostamos em um homem do povo. Operário de chão de fábrica, que gosta de uma cachacinha e de futebol, que fala com erros de concordância, que fala a linguagem do povo, que sabe se fazer entender pelo povão, que perdeu um dedo em um acidente de trabalho, que teve a coragem de liderar greve durante a ditadura. Esse homem colocou de vez o Brasil no mapa do mundo. Vimos então nosso país registrar os maiores aumentos na história do salário mínimo. Vimos o país registrar os menores índices de desemprego da história. Vimos o país pagar a dívida com o FMI, vimos serem inauguradas 12 novas universidades públicas e 214 novas escolas técnicas federais. Vimos o aumento da oferta do crédito. Vimos o acesso à universidade ser facilitado, bem como o acesso à inclusão digital. Vimos chefes de família que trabalhavam combatendo a dengue no Rio de Janeiro, e que foram cruelmente postos na rua pelo então ministro da saúde José Serra, demissão essa que teve como conseqüência a maior epidemia de dengue da história do estado, serem reintegrados e receberem todos os salários atrasados. Vimos o Brasil tecer novas relações comerciais no MERCOSUL, com a África do Sul, China e Índia, e com isso a crise que assolou os Estados Unidos e a Europa quase não nos afetou. Vimos os antigos monopólios privados serem desfeitos, e assim muitos serviços ficaram melhores e mais baratos, graças à concorrência. Vimos a indústria naval ser retomada, com plataformas de petróleo sendo construídas no Brasil, quando o interesse de nossas oligarquias era gerar  esses postos de trabalho em outro país. Vimos até novas estatais sendo criadas, para proteger nossas riquezas. O lucro da PetroSal será todo investido em obras sociais, isso foi tornado lei. Vimos até o presidente dos Estados Unidos dizer: “esse é o cara”.
           Vimos corrupção? Claro que sim. Mas não foi como sempre vimos antes. Até então se colocavam panos quentes sobre a corrupção, tudo era abafado, e ninguém ficava sabendo de nada. Mas no novo Brasil as coisas vieram à tona, nada ficou escondido. Gente do povo não sabe colocar panos quentes em cima.
           Ainda assim o Brasil cresceu. Saiu gente da linha da pobreza como nunca antes da história desse país, se me permitem o clichê. O Risco-Brasil, que mede o nível de confiança do mercado internacional no país, nunca foi tão baixo, tão favorável. Isso significa que o mundo passou a confiar no Brasil como um país para se investir como jamais ocorrera antes. Culpa do homem do povo. E olha que juravam que o mundo jamais confiaria nele.
           E agora nosso povo mantém sua sede por mudança. Nada de trazer de volta a águia norteamericana disfarçada de tucano. Nada de trazer de volta quem vendeu nosso país. Nada de trazer de volta quem congelou nossa economia, fazendo com que apenas especuladores e banqueiros ganhassem dinheiro. O que faz um país crescer não são os blefes das bolsas de valores, que compra e vende papéis falsos, moeda podre. O que verdadeiramente faz um país crescer é o TRABALHO! Educação e trabalho, esse é o lema!
           No esteio das revoluções, depois do homem do povo que bebe cachaça, joga uma pelada e fala errado, elegemos uma mulher. Mas também mulher do povo, mãe, avó, guerreira, que enfrentou os horrores da ditadura, que foi militante, que foi presa e torturada, e que representa essa nova tomada de consciência. O povo quis o homem do povão. Agora ele quer a mulher. Mas acima de tudo, o que o povo está dizendo é:
NAO QUEREMOS A VELHA ORDEM DE VOLTA!
Parabéns aos povo. Parabéns ao Brasil. Parabéns a todos nós.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O Deus que Conheço


          
Eu iria falar sobre esse assunto mais tarde, mas uma postagem em meu blog, feita por um grande amigo e irmão, criticando o excesso de citações bíblicas de meus textos, me fez sentir a necessidade de publicar logo um artigo sobre os fundamentos de minha fé. Quando me afirmo cristão, de modo algum estou me identificando com as pessoas que abarrotam nossas igrejas, sejam elas católicas ou protestantes. Sou cristão principalmente por buscar orientar minha vida pelo exemplo ético e prático de Jesus. A Bíblia e a Igreja para mim, só têm validade na medida em que falam de Cristo. E nesse ponto, devo esclarecer duas coisas: a Bíblia fala de Jesus, mas não o faz o tempo todo, o cristão de verdade deve buscar a Jesus dentro da Bíblia. E as igrejas há muito deixaram de pregar a Jesus, para pregar a si mesmas. Mas então quais seriam as bases de minha fé? Tudo começa no Evangelho de João, onde lemos: “no princípio era o Verbo”. A palavra “verbo” é tradução do grego “logos”, e seu significado literal é “palavra”, “discurso”. Vejo até um certo valor na tradução “verbo”, por ser essa a classe de palavras que representa ação, movimento. O Logos, portanto, seria a Palavra de Deus posta em movimento. Mas em minha opinião, há uma interpretação mais profunda para esse termo: o Evangelho de João foi escrito para uma comunidade grega, familiarizada com a filosofia de Aristóteles, para quem a matéria que compõe o universo sempre existiu, mas era uma massa disforme, desordenada, chamada por ele de Caos. O Logos seria o princípio ordenador do universo, que lhe deu forma, ordem e inteligibilidade, transformando o Caos em Cosmos. O autor do Evangelho de João afirma ser Jesus o Logos divino encarnado, feito imagem e semelhança do homem.
No discurso proferido em Atenas, registrado no livro dos Atos dos Apóstolos, na Bíblia, Paulo afirma que em Deus nós vivemos, nos movemos e existimos. Ou seja, Deus não apenas criou, mas mantém constantemente o universo, do contrário todo o Cosmo se aniquilaria, se desintegraria. A Teologia Cristã chama isso de Providência Divina, e tanto a Bíblia quanto a filosofia aristotélica dizem também ser o Logos o responsável pela manutenção do Cosmo. E como o Logos também conferiu inteligibilidade ao Cosmo, é possível ao homem não só viver, mas conhecer e ver sentido no universo.
O alicerce de minha fé é esse: o Logos Divino perpassa toda a Criação, e se manifesta o tempo todo aos homens, em maior ou menor grau (algo como a idéia da “Força”, das trilogias cinematográficas de Star Wars). E em Jesus de Nazaré, o Logos ganha sua expressão máxima no mundo. Sendo assim, toda a mensagem de Jesus já havia sido dada,  de forma embrionária e/ou fragmentária, em outros contextos. Não há um único ensinamento de Jesus que não esteja presente em outras religiões, e o mesmo Logos transmite esses ensinamentos a todas elas. Não me interessa então os detalhes teológicos do Cristianismo, nem suas tradições e rituais, a não ser quando estou pensando Teologia Cristã. Interessa-me apenas estar diante das mais variadas situações e me perguntar: “que faria Jesus numa situação dessas?”, “que significado isso teria para Jesus?”. E aí descubro que o grande mandamento de Cristo foi apenas que amássemos a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a nós mesmos. Mas isso também é dito no Budismo, no Islamismo, nas religiões espíritas, enfim, em todas as religiões. Para isso só precisamos procurar nas religiões aquilo que elas têm de melhor, sua essência, e não a tinta com a qual os líderes religiosos a pintaram ao longo dos séculos.
Mas se o Logos está presente em toda parte, por que razão sou cristão, e não de nenhuma outra religião? Por que creio eu ser Jesus, e não qualquer outro, a expressão máxima do Logos, do amor de Deus, no mundo? Essa pergunta não possui nenhuma resposta racional. Jesus simplesmente fala ao meu coração como nenhum outro. Mas lembrem-se: estou falando de Jesus, e não da letra fria e morta da Bíblia, e muito menos das instituições corruptas que advogam para si a posse exclusiva da divindade, e se autodenominam injustamente de “Igreja”. Igreja de verdade é toda reunião de dois ou mais em nome de Jesus (em nome do Logos, na verdade), e não em nome de si mesmos. Caio Fábio costuma dizer que a Bíblia lida sem Jesus torna-se a mãe de todas as heresias, e eu completaria dizendo que a Igreja sem Jesus é simplesmente “Sinagoga de Satanás” (não creio que o Diabo exista, mas uma igreja sem Jesus – e praticamente todas elas o são – é o mais próximo que consigo pensar do Coisa-Ruim).
Assim, eu afirmo: toda pessoa que busca de forma sincera vai encontrar a Deus, independente da religião pela qual ela irá empreender essa busca. Na verdade, Deus é quem irá encontrá-la, através de seu Verbo. Minha opção por Cristo vem do fato Dele, mais do que qualquer outro, falar ao meu coração. Essa opção é motivada unicamente pela fé. E esta é definida na própria Bíblia como a confiança em coisas que não podemos provar. Creio que todas as pessoas serão reconciliadas por Deus. Creio que essa reconciliação é dada por meio do Logos, e apenas através Dele. Creio que Jesus é a suprema revelação do Logos ao homem, mesmo não sendo a única. O budista não será “salvo” por seu budismo, nem o espírita por seu espiritismo, e muito menos o cristão o será por seu cristianismo. O ser humano fará as pazes com Deus através do Logos, que criou e mantém o universo, e um dia se fez homem para nos dizer: “o Reino de Deus já está entre vós”, e para nos admoestar: “amai-vos uns aos outros”. Todos serão salvos por Jesus, e a religião é o que menos importa.
Não deve haver, portanto, nenhum estranhamento no fato de eu fazer constantemente citações bíblicas. Afinal, trata-se da fonte de onde extraio minha orientação de fé. Apenas preciso deixar claro uma coisa: eu não advogo a famosa inerrância da Bíblia. Não creio nela como um livro divinamente inspirado em sua totalidade, isento de erros do primeiro ao último caracter. A Bíblia para mim não é a Palavra de Deus, ela apenas contém a Palavra de Deus. A Palavra de Deus é a mensagem trazida a nós por Jesus, e o texto bíblico é tão somente o código através do qual essa mensagem foi passada. E o dever do verdadeiro cristão é justamente extrair a Palavra de Deus da Bíblia.
Os teólogos costumam usar uma ferramenta de interpretação chamada “chave hermenêutica”, que é um conceito a partir do qual se faz a interpretação de todos os outros. Para mim, faço novamente coro com as palavras de Caio Fábio, e afirmo que a única chave hermenêutica válida para interpretar a Bíblia é Jesus Cristo. Quanto mais um texto se parece com Jesus, mais ele é “divinamente inspirado”, sendo o contrário também verdadeiro.
Essa é, de forma bem sucinta, a base de minha fé.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

CONFISSÃO E DESABAFO



Desde quando tomei a decisão de publicar os textos contendo minhas reflexões filosóficas em um blog, tenho recebido o retorno de muitos “leitores”, a maioria elogiando os assuntos abordados, a forma como são abordados, minha “sensibilidade” e “percepção” da vida, enfim, as pessoas vêem um trabalho de alguém que tem algo a dizer. Em pouco mais de um mês no ar, o blog ultrapassou a marca de 300 acessos. Nada mal para um blog que trata de temas densos.
Mas eu preciso fazer uma confissão, em nome da verdade pura e simples: provavelmente todos os meus leitores irão supor uma obrigatória coerência entre minhas palavras e minhas atitudes. Eu viveria, então, uma vida calcada em todos os valores que defendo em meus textos. Isso fatalmente faria de mim uma pessoa genial, uma verdadeira mistura de filósofo, poeta e santo, como sugere o título do blog. Aliás, façam fila, meninas, pois vocês estão diante de um bom partido! Bom, gente, essa última frase foi uma piada. Na verdade, existe em mim, como em quase todo ser humano, uma distância, às vezes abismal, entre as coisas que falo ou escrevo, os valores que defendo, e a forma como realmente vivo, e muitas vezes isso nem é culpa minha. Ter ciência de algo ser certo e colocar esse algo em prática são duas coisas diferentes.
Antes de qualquer coisa sou um ser humano, sujeito a alegrias e tristezas, a paixões e sonhos, a medos, dúvidas e angústias, a egoísmos e mesquinharias, aos sofrimentos e mazelas da vida. Sou capaz dos mais sublimes gestos de bondade, mas também das mais vis atrocidades. E exatamente essa condição paradoxal é o fator a me constituir humano. Com isso, um dos principais leitores de meus textos acaba sendo eu mesmo. Por diversas vezes, o alvo da crítica em meus escritos não é nada nem ninguém além de mim. Sou eu me admoestando, apresentando a mim mesmo uma saída sábia e digna para situações nas quais eu não agi bem. Sou eu me dizendo claramente: “você deveria ter agido dessa forma, mas não o fez!”
Jesus não foi como nós. Pelo menos não o Jesus da Fé. Os primeiros cristãos viram em Jesus uma coerência tão radical entre as coisas que Ele dizia e suas atitudes, que não foram capazes de escapar da conclusão: esse homem não pode ser apenas humano, ele também precisa ser Deus.
Na Bíblia, Novo Testamento, Epístola aos Romanos, o apóstolo Paulo faz uma interessante reflexão: ele percebe que conhece a lei de Deus, quer praticá-la, mas simplesmente não consegue, ficando sempre compelido a fazer aquilo que sabe ser errado. Paulo atribui isso à condição pecaminosa inerente ao homem, e conclui que a única coisa capaz de livrá-lo dessas amarras é o amor de Deus, expresso em Jesus de Nazaré.
Na Epístola aos Filipenses, o autor declara em alto e bom som a condição divina de Jesus. No entanto, o mesmo texto afirma ter Jesus se esvaziado de sua divindade na Encarnação, tornando-se como os homens. Qual o significado disso? Teria Jesus se tornado um ser humano qualquer, esse paradoxo produtor de bondades e de maldades aglutinado no mesmo ser? De acordo com o que penso sobre a morte de Jesus, isso não procede: Jesus identificou-se com a raça humana não por ter cometido os mesmo erros, mas apenas por sofrer junto dela os mesmos sofrimentos. Jesus viveu e morreu na cruz por nossos pecados, mas sua intenção não era pagar por eles, mas sim sentir em seu próprio ser, em suas entranhas, todas as suas conseqüências. Essa forma de entender o sacrifício de Cristo nem é muito comum no cristianismo histórico, mas a considero a melhor forma de entender essa questão.
Na pessoa de Jesus de Nazaré, Deus em pessoa veio até nós, para experimentar a nossa dor, e no Evangelho de João, Jesus nos dá o mais importante dos mandamentos: que nós, seres humanos, nos amemos uns aos outros, como Ele nos amou. Isso nos obriga a também nós nos identificarmos com a miséria, com o erro, com o pecado alheio. Até mesmo o mais torpe dos criminosos merece nossa compaixão. Mesmo porque poderia ser nós no lugar deles, cometendo os mesmos crimes, e carecendo de compaixão tanto quanto eles. A diferença entre um criminoso e um homem de bem muitas vezes pode ser explicada pelas diferenças na história de vida de cada um deles.
A Primeira Epístola de João chama de mentiroso quem diz amar a Deus e não amar ao próximo, porque não há como amar a Deus, que não vemos, sem antes amar ao próximo, que podemos ver, com o qual podemos interagir. Mais importante ainda: sendo nós imagem e semelhança de Deus, como o primeiro livro do Velho Testamento afirma, a melhor maneira de amar a Deus, que é intangível, é através de sua imagem e semelhança. Em outras palavras, o serviço a Deus passa invariavelmente pelo serviço ao homem. A Bíblia condena que se façam imagens de Deus exatamente porque não precisamos delas. O próprio Deus nos deu uma imagem Dele mesmo para que O sirvamos através dela, e essa imagem se chama SER HUMANO.
Portanto, amados leitores, caso vocês me vejam contradizer todas as coisas que defendo com unhas e dentes, por qualquer fraqueza minha, peço tão somente essa compaixão que se identifica com todo sofrimento. Como todo ser humano, sei o que é certo, mas nem sempre pratico o que é certo, e só o perdão pode me apontar uma saída para fazer melhor da próxima vez.