sexta-feira, 29 de abril de 2011

A INEXORABILIDADE DA SINFONIA CÓSMICA


Ói, olhe o céu, já não é o mesmo céu que você conheceu, não é mais
Vê, ói que céu, é um céu carregado e rajado, suspenso no ar

Vê, é o sinal, é o sinal das trombetas, dos anjos e dos guardiões
Ói, lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons

Ói, olhe o mal, vem de braços e abraços com o bem num romance astral
(da canção “Trem das Sete”, de Raul Seixas)


            Vivo hoje uma serenidade quase estóica. É inescapável que quaisquer olhares humanos, do contemplar mais poeticamente ingênuo ao mais abalizadamente científico escrutínio dos meandros da natureza, enfim, todo o ato humano de ver, só nos tragam uma única certeza aos nossos corações e mentes ávidos por conhecimento: todos nós, entes do Cosmo, desde a mais ínfima partícula subatômica, até o mais complexo dos seres autoconscientes,  bailamos ritmados, em movimentos circulares de quase moto-perpétuo, tal qual um carrossel rodopiando frente aos olhos vidrados de alguma infantil divindade.
            Pouco podemos fazer para alterar esse quadro. A criação segue sua dança infinita, e talvez nosso debater constante, nossas tentativas patéticas de alterar o ritmo do balé cósmico não provoquem nada além de quase imperceptíveis cócegas nesse imenso corpo em movimento chamado Universo. Do alto de nossas arrogâcias pueris, nos degladiamos em debates infindos sobre os reveses que estamos causando no Cosmo, e em nossa tresloucada megalomania, acabamos por não nos darmos conta de uma verdade simples, tão simples quanto gritante: no máximo, temos o poder de arruinar nosso berço, nossa mãe Gaia (claro, e nós mesmos com ela, juntamente com todos os outros seres viventes de nosso planeta). Por mais vil e torpe que seja esse matricídio, certamente o restante dessa enorme família de corpos celestes flutuantes continuará vivo. Um pouco ressentidos, talvez, pela perda de um ente querido. Mas a recuperação, se pensarmos em termos das dimensões temporais do universo, será até rápida. Isso porque a mãe Terra é tão somente uma minúscula célula em um organismo de dimensões imensuráveis, uma pequena peça, girando no sistema de engrenagens de uma máquina inimaginavelmente grande, ao menos aos olhos estupefatos do sujeito chamado de observador ingênuo pela nossa tão cartesianamente metódica ciência. Pouca falta fará ao todo um repentino desaparecimento da Terra. Todavia nós, meras crianças cósmicas, ainda padecendo do típico egocentrismo infantil, incapazes de vermos a nós mesmos em outra situação que não entronizados no centro, no mais elevado patamar da criação, imaginamos que uma eventual ausência nossa silenciará a música das esferas, e com isso cessará toda a atividade do grande dançarino cósmico. Como se um bailarino interrompesse sua melhor apresentação por causa da perda de um simples fio de cabelo, ou de uma única lantejoula de suas vestes. Na verdade, apenas não estaremos lá para aplaudir o espetáculo. Mas mesmo assim, como se diz nas terras do imperialismo, do hamburger e do cristianismo fundamentalista, “the show must go on”. A vida segue seu curso.
            Alguns chegam ao desvairio de se proclamarem demiurgos, criaturas semi-divinas, com poderes para moldarem seus próprios universos, ao seu bel-prazer e em acordo com a quase sempre não assumida finitude e a sempre ontológica contradição de suas capacidades de produzir conhecimento. Como se até mesmo o psicodélico e multicolorido farfalhar das asas de um bando de borboletas monarcas, cruzando o planeta em sua migração anual, fosse responsabilidade deles. Desfortunamente ou não, caras crianças cósmicas, a maravilhosa Sinfonia Espaço-temporal, cujo primeiro ato teve seu início bilhões e bilhões de anos atrás, quando o Grande Maestro do Universo brandiu sua batuta criadora pela primeira vez, num gesto batizado pela ciência de “Big Bang”, não pode parar, e não o fará, enquanto a última nota não for entoada. E a sinfonia será executada até o fim, mesmo com uma possível ausência de um ou outro músico. Ou por acaso alguém supõe que o Sol aguarda pacientemente que hajam olhos para contemplar a beleza de uma simples aurora, para só então poder nascer?
            No fundo, no fundo, somos a todo tempo assolados pelo incômodo dessa constatação, talvez por ela fazer passar diante de nossos olhos incrédulos, escrita em letras de neon como num letreiro barato de beira de estrada, feio mais impossível de não ser notado, a certeza que acaba por deflagrar e exacerbar a nossa própria condição de finitude. Detestamos admitir, mas faremos muito menos falta ao Universo do que nosso pusilânime egocentrismo desejaria. Não nos iludamos, ó homens de pequena fé, mas tudo o mais na Sinfonia Cósmica, toda a dança do Universo, seguirá seu rumo mesmo sem nós. Desde o nascimento de uma estrela, passando pelo choque entre galáxias, pelos quadros de arte moderna pintados pelas mãos habilidosas da mãe Natureza, como no caso das auroras boreal e austral, ou das ancestrais nebulosas, até a eclosão de um ovo de mosquito, ou da cantoria tão animada quanto carente de afinação do pipoqueiro da esquina, tudo estará lá, no mesmo lugar. Não no mesmo lugar físico, mas no mesmo ponto da pauta musical cósmica, ou no mesmo movimento da coreografia do Universo. Apenas nós não mais estaremos presentes. Mas não faltam olhos extras para contemplar a magnitude da Criação. E mesmo que não houvesse olhar algum, nenhuma diferença faria. O Universo não precisa de olhos o contemplando para ser belo.
            Assim me sinto, entre o estóico e o Zen. Poucos prazeres suplantam o deleite de apreciar a Sinfonia Cósmica, a dança do Universo. Mais inebriante ainda é nos sabermos parte delas, ainda que pequeninas partes, tal grãos de areia perdidos em uma extensa praia. E nosso passamento não pode ser pensado acompanhado de uma vontade imensamente egoísta de querermos que o espetáculo seja interrompido por conta de nossa ausência. Se a manifestação das maravilhas da criação prescinde de olhos para apreciá-la, que dirá de um par de olhos específicos, e no caso sempre os nossos próprios? Aprender essa lição gera desapego, mas não um desapego apático, não um dar de ombros desinteressado para tudo o que a Criação nos proporciona. Isso seria como sair do caldeirão, para cair diretamente no fogo, se estamos tentando nos desvencilhar de um apego neurótico ao mundo material, este que só produz o desespero e o medo da morte, e nos torna monstros devoradores de bens de consumo (como se o prazer de consumir nos devolvesse a sensação absurda de sermos imortais). A participação no cantar e dançar do Cosmos precisa acontecer de forma intensa, porém serena. Uma canção, um quadro ou um copo de cerveja devem ser apreciados pelo que eles possuem de belo, de agradável, e não pela ilusão de que o mero ato de apreciar traz algo de concreto para nossas existências. Se assim o fizermos, ficaremos escravos de nosso anseio por prazer, e pior, iludindo-nos com a ideia de que o que nos prende é o objeto de nossa cobiça, e não nosso próprio movimento de cobiçar. Somos escravos de nosso próprio desejo, e os objetos de consumo são tão somente ferramentas que nos permitem operacionalizá-lo, apontá-lo para alguma direção específica, dar-lhe um sentido, um nome. Assim, o desejo se torna desejo de algo. Exorcisamos e expulsamos para as diversas manadas de porcos existentes em nossa volta a nossa própria Legião interna, nossos demônios mais íntimos, para assim podermos combatê-los em algo fora de nós mesmos.
            Viver, então, se torna a sublime e às vezes difícil arte de cantar e dançar ao som da Sinfonia Cósmica, ainda que saibamos que nossa participação nela não alcance sequer um compasso da Partitura Divina, e poderemos nos proclamar sábios quando alcançarmos uma compreensão plena de que a Sinofia é bela, mesmos naqueles trechos dos quais não participamos. O Canto Universal é belo, mesmo nos momentos em que nossas próprias vozes estão em silêncio, ou quando nossos ouvidos não estão lá para ouvir. E a Dança do Universo será sempre bela, mesmo quando nossos corpos já há muito estiverem imóveis.