sábado, 29 de janeiro de 2011

CRÔNICAS DO COTIDIANO: UM DIA NO SHOPPING ou A CULTURA FAST-FOOD ou A ERA DO CONTROLE REMOTO


 Não me diga que me ama
Não me queira não me afague
Sentimento pegue e pague
Emoção compre em tablete
Mastigue como chiclete
Jogue fora na sarjeta (quem vai querer comprar banana?)
Compre um lote do futuro
Cheque para trinta dias
Nosso plano de seguro
Cobre a sua carência
Eu perdi o paraíso
Mas ganhei inteligência
Demência, felicidade,
Propriedade privada

(da canção “Piercing”, de Zeca Baleiro)
 

Uma coisa sou obrigado a admitir: mesmo indivíduos excêntricos inclinados à filosofia ou chatos de galocha críticos de tudo (e eu me enquadro em ambas as descrições) precisam, vez por outra, agir como “pessoas normais”, ou seja, fazer o que todo mundo faz. Movido por esse impulso, dias atrás visitei pela primeira vez o novo shopping center de minha cidade, inaugurado no início de dezembro passado. Esperei apenas passar toda aquela balbúrdia das festas de fim de ano, para não encarar a visão do inferno de um shopping center superlotado, e lá fui eu me fingir de terráqueo comum.
           O projeto do novo shopping center é interessante: da entrada principal até o prédio propriamente dito temos uma caminhada de mais de uma centena de metros, através de um corredor decorado como se fosse uma praça, ladeado por pôsteres enormes com fotos gigantes de pontos turísticos da cidade, cuja existência até então provavelmente era desconhecida para 99% da população do município, além das chopperias. Ótima a idéia de colocar as chopperias fora do prédio do shopping center, por duas razões: primeiro por permitir seu funcionamento mesmo após o fechamento das outras lojas, e segundo, como as chopperias ficam ao ar livre, sem ar condicionado, o calor se torna um convite para beber um pouco mais (e os donos agradecem por isso). No meio desse corredor de entrada, algumas pequenas cascatas artificiais abastecem um estreito e comprido lago artificial. Aproximei-me dele, a fim de descobrir se haviam peixes. Mas só encontrei lixo. Típico de lugares freqüentados por “pessoas normais”.
           Por dentro, o shopping center é apenas um shopping center, com todas as lojas encontradas em todos os shopping centers. Incrível como eles conseguem ser virtualmente idênticos. Depois de circular por todos os andares em busca de algo diferente, interessante (levei menos de 10 minutos fazendo isso), ficou a triste constatação: o novo shopping center celebrou de forma emblemática a morte da cultura em minha cidade. Não há uma livraria sequer. Se eu quiser comprar algum produto com a logomarca de meu time de futebol, tenho pelo menos umas quatro opções; querendo um livro, tenho que apelar para as lojas virtuais da internet, ou ir a outro shopping center. O melhor mesmo seria, infelizmente, me deslocar até outra cidade.
           A princípio, a idéia de um centro de compras (para os leitores menos atentos, é isso o que “shopping center” significa) parece maravilhosa. Muitas lojas, vendendo os mais variados produtos, além de cinemas, restaurantes e salões de jogos, tudo reunido em um único lugar. Prático, não? Mas já pararam para pensar no preço dessa praticidade toda? Nós simplesmente perdemos o hábito de andar pelas ruas, de passar pelas pessoas e dizer “bom dia”, “boa tarde”, de observar o lugar onde vivemos. Apenas algumas localidades do interior ainda mantêm esse costume, mas mesmo o interior está perdendo esse ar de humanidade, e está sendo contaminado por essa lógica individualista que assola as grandes cidades. Tudo bem, existe o aspecto da segurança: os shopping centers são bem mais seguros do que as ruas, não posso negar, e existe ainda a questão da já citada praticidade, por termos a quase certeza de encontrar tudo o que queremos. Mas será que vale o preço?
           Nossa pós-modernidade gerou uma espécie de “cultura fast-food”, onde tudo tem que ser rápido, e ao mesmo tempo exigir o menor esforço possível. Podemos também chamar nosso tempo de “era do controle remoto”. A lei do menor esforço, estudada cientificamente pelas correntes tayloristas da administração no início do século XX, transpõe as fronteiras da produção industrial, para invadir todos os aspectos de nossa vida. Tudo isso a despeito do fato das teorias da administração posteriores tecerem severas críticas ao Taylorismo, por se tratar de uma forma extremamente robotizante e robotizada de se conceber o ser humano. Taylor abordou o trabalho pensando apenas em seu aspecto prático, sem levar em conta outras dimensões da natureza humana. Uma das mais brilhantes críticas a esse modelo é o filme “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin. Recomendo a todos. Filmado há mais de 70 anos, o filme consegue se manter irresistivelmente atual, e além de ser uma crítica muito inteligente, é também uma hilariante comédia.
Antigamente, nossas avós faziam bolos para o lanche. Compravam cada um dos ingredientes (quando não pegavam alguns deles no quintal, das hortas, pomares ou galinheiros), misturavam tudo segundo as mais variadas receitas, e depois colocavam para assar. Isso gerava nas crianças uma expectativa muito boa de se sentir, ainda mais quando elas tinham permissão para participar do processo. Hoje em dia, compra-se uma massa pronta, que após alguns minutos em um forno de microondas já pode ser servida. O que perdemos em relação ao tempo dos avós? Simplesmente o prazer de preparar um bolo. Ficamos tão focados em nossas metas, em nossos pontos de chegada, que sequer percebemos como o caminho até eles pode ser belo, ou pelo menos divertido. Até mesmo a atividade física entrou na dança, e hoje em dia, diversos canais de televisão especializados em televendas anunciam, como a técnica mais revolucionária para o emagrecimento e aquisição de condicionamento físico, um aparelho onde você se exercita sem precisar se mover. Como assim fazer exercícios sem sequer se mover? Até entendo a motivação dos gordinhos, mas por que razão um sujeito que não quer se movimentar vai querer condicionamento físico? E depois dizem que eu é que sou estranho...
           Caminhar pelas ruas, contemplando as árvores, os pássaros, passear pelas praças, cumprimentar as pessoas, brincar com as crianças, e eventualmente entrar em uma loja, tudo isso hoje é considerado pura perda de tempo. O negócio é correr para um shopping center, comprar o que se precisa, e voltar para casa o mais rápido possível, para usufruir o bem de consumo adquirido. Novamente o consumo orientando nossas ações (e me perdoem se estou me tornando repetitivo). Outra vez a máquina capitalista nos levando para o inferno do individualismo extremo. E infelizmente, o argumento da segurança acaba sendo convincente, realmente a violência é um problema real, não podemos fingir que ela não existe.  E no fim, a triste constatação: o capitalismo não precisa de significado, e muito menos de beleza. Ele só precisa ser prático.
Imaginemos um ET hippie que por acidente venha parar em nossa mãe Gaia. Mas por infelicidade ele caiu justamente no trecho mais urbano de uma grande cidade. Observando a Terra, protegido por seu “aparelho de invisibilidade” (suponho que extraterrestres avançadíssimos possuam geringonças desse tipo), nosso mochileiro das galáxias não tardará em constatar algumas coisas: os humanos vivem dentro de grandes caixas, de diferentes tamanhos, cada uma delas abrigando diferentes quantidades de indivíduos (depois ele vai aprender que as tais caixas se chamam casas e edifícios). Para sair dali, os primitivos terráqueos se enfiam em outra caixa, essa bem menorzinha. Mas ao contrário das primeiras, essas pequenas caixas se movem, sempre rapidamente, de um lugar para outro (quem deduzir que eu estou falando de automóveis, parabéns: é isso mesmo). Nosso ET imediatamente liga os foguetes propulsores de sua mochila espacial (claro que eles têm isso; eles têm até aparelhos que os tornam invisíveis!), e parte no encalço dos humanos que se deslocam dentro da caixinha ambulante, querendo descobrir o que farão. E o que fazem os humanos quando a caixinha que os transporta pára? Entram imediatamente em outra caixa grande imóvel, que pode ser o local de trabalho, uma academia de ginástica, a escola, uma universidade, teatro, ou até mesmo um shopping center. Talvez o ET conclua que os seres humanos são totalmente sensíveis à luz solar, e morreriam tostados, caso saíssem de suas caixas. De volta ao seu planeta, o ET diria que sequer conseguiu ver direito como era a aparência dos terráqueos. Eles não se expunham à luz solar, sempre se deslocando de caixa em caixa. Andando pelas ruas, nosso amigo intergalático viu apenas cães, mendigos, drogados, prostitutas e outros párias sociais. Mas o nível de degradação deles era tão grande, que nosso amigo de outro mundo não conseguiu diferenciá-los. Os humanos “de verdade” só se deslocam de caixa em caixa, concluiu.
Essa cultura do “tudo muito rápido e sem esforço” fez de vítima até mesmo a língua portuguesa. A Última Flor do Lácio Inculta e Bela, tão bem cantada pelo poeta Olavo Bilac, vem sofrendo inúmeras violências, e está se transformando gradativamente em outro idioma. O famoso “miguxês”, por exemplo, como foi batizada a nova forma de expressão escrita popularizada entre os jovens pela internet por conta dos sites de relacionamento e dos programas de mensagem instantânea, é sim, admito, uma nova forma de linguagem, com suas especificidades e sua legitimidade em termos de manifestação cultural. Mas reparem como o tal do miguxês é todo baseado em reduzir o tamanho das palavras, normalmente suprimindo vogais (“você” vira “vc”, “também” vira “tb”, e assim por diante), substituindo letras por outras com mesmo som (sempre que uma palavra tem “ch”, digita-se um “x”, por exemplo), ou usando outros caracteres para substituir as letras (a palavra “demais” vira “d+”, e assim sucessivamente). Resumindo, é uma linguagem que tem como regra básica digitar menos caracteres, falar mais com menos esforço. Perde-se totalmente o sentido estético do idioma, toda a sua beleza gramatical, em nome do mero pragmatismo de comunicar. Eficiente, mas muito feio. Poesia então, já nem se sabe mais o que é isso, e aí estão todas as bandas coloridas, funkeiros e cantores sertanejos universitários, que não me deixam mentir. O miguxês seria então a versão “fast-food” da língua portuguesa, específica para uso online, bem ao gosto do inglês norteamericano (os mestres da filosofia fast-food). Apenas a título de informação, os norteamericanos caminham a passos largos para transformar o idioma de Shakespeare num mero agrupamento de monossílabos.
Nossa cultura faz com que até os nomes próprios sejam reduzidos, simplificados, normalmente à sua primeira sílaba. Assim, Fernanda vira “Fê”, Eduardo vira “Edu”, Maria Lúcia vira “Malu”, José Carlos vira “Zeca”, Patrícia vira “Paty”, e por aí vai. “Que cara chato! Isso é apenas uma forma carinhosa de tratar as pessoas!”, meu leitor pode pensar nesse momento. Mas é o carinho “fast-food”: sob a roupagem de um tratamento carinhoso, você não precisa mais se preocupar em lembrar se sua amiga se chama Rosa, Rosângela, Rosana, Rosane, Rosiane, Roberta, Ronalda, Ronilda, Rosilda, Rosaura, Rosália, Roxana, Rossana etc. Basta chamá-la de “Rô”. Não é menos informação para dar conta?
Não sei se vocês notaram que o tempo todo eu usei a expressão “shopping center”. Alguém estranhou? Pois minha intenção foi justamente demonstrar esse aspecto simplificador da cultura pós-moderna. Afinal, todo mundo hoje diz apenas “shopping”. Mais prático? Pode ser. Melhor? Tenho minhas dúvidas. Quando reduzimos algo ao seu aspecto prático, pragmático, quando simplificamos nossa realidade em nome da velocidade e do menor esforço, corremos o risco de não percebermos toda a diversidade, complexidade e beleza desse algo, e acabamos ficando com uma experiência e uma percepção muito limitadas de nossa realidade. E porque nesse caso suprimimos o “center”, e não o “shopping”? Elementar, meu caro leitor: CENTER significa “centro”, e SHOPPING significa “compras”, ou o “ato de comprar”. Qual desses dois significados o nosso modo de produção capitalista e a nossa lógica consumista preferem que seja mantido?
Decididamente, essas não são reflexões comuns de se encontrar em um shopping center, embora não deixem de ser pertinentes. Por fim, acabei ligando para dois amigos, e terminamos a noite sentados à mesa de uma das chopperias do shopping (sem o “center”, afinal, também sou filho de Deus, posso querer economizar caracteres, especialmente em nome de não agravar ainda mais as minhas tendinites). Lá, bebemos chopp, e discutimos a morte da cultura de nossa cidade, e sobre como poderíamos proceder para ajudar a ressuscitá-la. Estávamos no melhor lugar para discutir esses assuntos? Talvez sim. O grande símbolo de uma sociedade que prima pela velocidade, pela facilidade e pela praticidade, em detrimento do conteúdo, dos significados mais profundos, belos e amplos, o ícone de um mundo que olha uma viagem e só vê a chegada ao destino, perdendo toda a beleza do caminho, pode ser o melhor lugar para se falar em conteúdo, e em beleza. Pelo menos os objetos de nossas críticas estão lá, ao vivo e a cores. E lembremos sempre o conselho que provavelmente seria dado por nosso amigo ET: vamos ao shopping, isso em si mesmo não tem absolutamente nada demais. Mas jamais nos esqueçamos: ainda existe um mundo lá fora.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

ANJOS EM FORMA DE GENTE!


Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria


Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida....

(da canção “Maria, Maria”, de Milton Nascimento e Fernando Brandt)


          Eu já havia afirmado em textos anteriores: o ser humano é capaz de chegar, desde aos mais sublimes atos de bondade, até às mais vis das atrocidades, tudo ao mesmo tempo. E ao longo desses dias de tragédia na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro, temos visto tanto gestos de solidariedade e compaixão quanto as piores demonstrações de perversidade por parte das pessoas. Anjos e demônios convivendo lado a lado, dentro desse universo complexo chamado ser humano.
           Não quero falar muito acerca do lado da maldade, registrando apenas a existência de algumas pessoas sem coração, que resolvem se aproveitar até mesmo de tragédias dessa magnitude, para tentar ganhar algum dinheiro fácil. Monstros em forma de gente, como comerciantes se aproveitando dos acontecimentos para super-faturar alguns de seus produtos. Antes de começarem a chegar os donativos, houve quem vendesse uma garrafa de água mineral de um litro por VINTE REAIS, e um botijão de gás de cozinha chegou a custar NOVENTA REAIS. Além disso, a polícia prendeu outros monstros humanos, que tentavam desviar caminhões lotados de donativos, para vender em outras localidades. Nessas horas, muita gente defende a pena de morte para casos específicos dessa natureza, e eu, que sou radicalmente contra a Pena Capital, acabo ficando sem ter o que dizer.
           Mas graças a Deus, nosso mundo não é habitado apenas por demônios, e eu também posso usar essas linhas para falar sobre pessoas, cujo exemplo de superação os tornaram verdadeiros anjos, luzes que devem deixar marcas profundas em nossos corações. Eu, pelo menos, jamais serei o mesmo, depois de ter conhecido essas lições de vida. Vou citar três exemplos, apenas três, mas que valem por mil maus exemplos que nos possam ser dados.
           Vamos começar por Laerte Calil de Freitas, prefeito do pequeno município de Areal, situado a 40km de Petrópolis. Ao perceber um aumento anormal no nível das águas dos rios que cortam a cidade, ele imediatamente entrou em contato com um município vizinho, situado rio acima. Confirmando as inundações, que fatalmente também atingiriam Areal, Laerte acionou um carro de som de uma rádio comunitária local, para avisar os moradores ribeirinhos, pedindo para eles saírem de suas casas o mais rapidamente possível. Resultado: a enchente atingiu o município, diversas casas foram destruídas, levadas pela correnteza, inclusive a casa do motorista do carro de som, mas ninguém morreu; as perdas foram apenas materiais.
           O segundo anjo se chama Leandro Machado. Pedreiro de profissão, e conhecedor como poucos do interior do município de Nova Friburgo, onde mora, seus conhecimentos foram decisivos para indicar as melhores formas de acesso a diversas áreas isoladas. Todavia, enquanto trabalhava como voluntário, chegou-lhe a notícia trágica: sua própria casa havia sido atingida, e sua esposa e seu filho, de apenas dois anos de idade, estavam mortos. Atordoado com a notícia, Leandro tomou uma decisão que surpreendeu até mesmo os bombeiros, acostumados a lidar com tragédias: como não tinha mais como ajudar a própria família, Leandro resolveu continuar ajudando os outros, e seguiu em frente com seu serviço voluntário. Desrespeito para com seus familiares mortos? Com toda certeza, sua esposa e seu filho discordariam, e aposto que de lá do céu ambos estão aplaudindo, orgulhosos de seu herói.
           Por fim, preciso falar de um anjo de nome Wellington da Silva Guimarães. Depois de deixar seu filho Nicolas, de apenas sete meses de idade, para passar o dia com a avó materna, Wellington vai à casa de sua sogra, juntamente com sua esposa, para buscar a criança e voltar para casa. Contudo, por conta da chuva já pesada, o casal decide dormir na casa da sogra de Wellington. Durante a madrugada, um deslizamento de barreira atingiu a casa. A esposa e a sogra de Wellington sucumbem ao incidente. Wellington, preso pela lama em um espaço de aproximadamente um metro quadrado, vê seu filho com vida. Heroicamente, ele consegue tirar as roupinhas molhadas de Nicolas, e faz uso de uma fronha, e de seu próprio corpo, para manter o bebê aquecido. Por instinto ou por iluminação divina, Wellington usa sua própria língua para tentar alimentar seu filho com sua saliva. O gesto também acaba servindo para fazer Nicolas dormir quase o tempo todo, como se a língua de seu pai fosse o seio de sua mãe. Após um período de treze a quinze horas nessa situação, segundo as pessoas que fizeram o resgate, pai e filho são finalmente retirados da lama com vida. Enquanto resgatavam a criança, as pessoas em volta ouviam Wellington falar a seu filho: “tenha coragem, porque você ainda tem um mundo para enfrentar lá fora”. Talvez o “mundo lá fora” seja realmente mais cruel do que o mar de lama no qual eles estavam presos. Dias depois, em entrevista a uma rádio, Wellington se diz confortado com a perda de sua mulher e sua sogra, e está certo de que Deus tem um propósito para tudo o que acontece. Diz ainda que Deus o abençoou de tal forma, a ponto dele perder a noção do tempo enquanto estava naquele inferno. Wellington só soube quanto tempo ficou lá por intermédio de seus resgatantes. Jesus diria dele a mesma coisa que disse do centurião romano que pediu a cura de seu servo: “Ouvindo isto, admirou-se Jesus e disse aos que o seguiam: Em verdade vos afirmo que nem mesmo em Israel achei fé como esta” (Mt 8:10).
           Lamento pelos monstros que surgiram ao longo desses acontecimentos, tentando tirar proveito da desgraça alheia. Só posso rogar a Deus que lhes toque os corações, e os façam ver as atrocidades que eles vinham cometendo. Mas por outro lado, os anjos citados acima me enchem o peito de esperança, e me trazem algum conforto em meio a essa tragédia toda, além de me fazer refletir sobre a pequenez de meus próprios problemas, que muitas vezes eu acabo super-valorizando. Perto disso tudo eles não são nada. Diante do que assolou aquela gente, minhas dores são apenas cócegas. E talvez as suas também o sejam, amado leitor.
           Parabéns, Laerte. Parabéns Leandro. Parabéns Wellington. Vocês são meus heróis. Vocês me fazem não perder as esperanças. Graças a vocês, e a exemplos como os seus, eu ainda consigo acreditar em um mundo melhor! Que Deus continue a dar a vocês essa Força, essa Fé e essa Paz. E que Deus levante da terra cada vez mais heróis como vocês. O mundo precisa disso, e agradece.
 

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

MAIS UMA DESGRAÇA ANUNCIADA! ATE QUANDO, MEU DEUS?


          Não é nossa culpa, nascemos já com a bênção
          Mas isso não é desculpa pela má distribuição
          Com tanta riqueza por aí onde é que está
          Cadê sua fração?
          Até quando esperar a plebe se ajoelhar
          Esperando a ajuda de Deus?
          (da canção "Até Quando Esperar?", gravada pelo grupo Plebe Rude)
   
          Eu já tinha um texto pronto para publicar essa semana no blog, mas as últimas tragédias ocorridas na Região Serrana do Rio de Janeiro, onde as chuvas provocaram enchentes e deslizamentos de terra, causando a morte de centenas de pessoas, me obrigaram a adiar a publicação desse texto. Não há como não falar desses últimos acontecimentos. E infelizmente, no momento em que escrevo essas linhas, outras tragédias ainda podem acontecer, há previsão de mais chuvas, e o número de mortos deve aumentar, à medida em que os corpos sejam localizados.
Centenas de pessoas tiveram suas vidas tragicamente interrompidas, e os sobreviventes precisarão reconstruir suas existências, com quase nenhuma ferramenta para isso. Além de terem de recuperar todos os bens perdidos, essas pessoas terão que aprender a viver sem seus entes queridos, tirados deles da forma mais abrupta possível. E ao contrário dos bens materiais, as pessoas não podem ser substituídas, só a lembrança vai sobreviver, nos corações daqueles que ficaram. Uma mulher concedeu uma entrevista para um canal de televisão: ela tinha perdido nada menos do que QUINZE pessoas de sua família. Nem eu, nem você, meu leitor, nem ninguém tem como descrever essa dor: só quem sente isso na pele pode ter uma noção de como é.
Tenho uma afeição especial por um dos municípios atingidos. Além de ter parentes nascidos lá, Nova Friburgo é para mim um dos melhores lugares para se viver, e um dos melhores destinos para quem deseja viajar. A natureza mostra lá toda sua grandiosidade: cachoeiras, trilhas, picos, fauna e flora exuberantes, e um clima extremamente agradável, o típico friozinho de serra. Fundada por colonos suíços, mas com a presença de diversas outras etnias (alemães, espanhóis, húngaros, japoneses, entre outros), Nova Friburgo celebra suas tradições múltiplas, com festivais culturais e gastronômicos que se estendem ao longo de quase todo o ano. Amo a cidade como se fosse uma segunda casa minha. Inclusive um de meus sonhos é, após me aposentar, terminar meus dias morando lá. E me dói ver as fotos da tragédia. Como disse um amigo meu, cuja família ainda reside no município: “é como se a cidade que tanto amamos simplesmente tivesse deixado de existir!” Os outros municípios atingidos têm também seus encantos próprios.
No meio da consternação pelas perdas, especialmente as perdas humanas, em meio ao sentimento de compaixão e solidariedade pelos sobreviventes, cujos vazios deixados por seus entes queridos mortos jamais será preenchido, não pode deixar de surgir uma revolta. Não contra as chuvas, a natureza, ou contra o divino, mas contra os verdadeiros responsáveis por acontecimentos desse tipo. Nossos governantes, ocupados com seus interesses pessoais, cuja natureza nem me atrevo a supor, assistiram de braços cruzados, ao longo dos anos, a ocupação e o crescimento desordenado das suas cidades. Sem perspectivas de emprego no interior, muitas pessoas buscam moradia perto dos centros das cidades, e não raras vezes, não têm outra opção senão ocupar áreas de risco. Esse é um processo que vem se arrastando ao longo da história, e de modo algum começou ontem. Quase sempre as pessoas sabem dos riscos, mas não há alternativa: muitas vezes é isso ou passar fome. Não podemos culpá-las.
Em 2010, duas tragédias semelhantes aconteceram no Estado do Rio de Janeiro, uma delas no município de Angra dos Reis, e outra que atingiu a Capital e a Região Metropolitana do estado. Pelos mesmos motivos. E já naquela época, muito se falou na possibilidade de uma tragédia parecida na Região Serrana, cujas características geográficas, somadas à ocupação e crescimento desordenados, ocorridos com a total conivência histórica de seus governantes, a tornam particularmente vulnerável. Desgraça anunciada, desgraça concretizada. O número oficial de mortos na Região Serrana já supera a soma dos dois acontecimentos de 2010, e esse número, por razões já citadas acima, infelizmente ainda deve aumentar.
O espetáculo circense que vemos na imprensa é ao mesmo tempo deprimente e revoltante. Autoridades políticas das esferas estadual e federal culpam as autoridades municipais pelas tragédias mais do que anunciadas, por serem elas as que estão mais próximas, e com isso terem mais condições de fiscalizar as ocupações. As autoridades municipais, por seu turno, acusam as autoridades de esferas superiores de descaso total, de jamais darem o devido apoio e atenção a um problema que o poder público municipal não tem como resolver sozinho. Eles sequer percebem que muitos dos que estão em uma das esferas hoje, estavam em outras tempos atrás,  e só estão preocupados em fazer da desgraça do povo, já tão sofrido por si só, uma passarela onde podem desfilar suas politicagens. Construir ou fortalecer seus nomes à custa de mortes, de dores, de perdas materiais, de gente que não tinha nada e mesmo assim perdeu todo o pouco que tinha, é tudo o que os facínoras que nos governam querem. Vampiros, embriagando-se do sangue de inocentes.
Do outro lado da moeda, e felizmente sempre temos outro lado da moeda, vemos a população, o cidadão de bem, solidarizar-se com os sobreviventes. E mais uma vez uma enxurrada de donativos vai ser encaminhada aos necessitados, vencendo os obstáculos de pessoas inescrupulosas que desviam para si as melhores doações, e das autoridades que tentam se promover, como se as doações tivessem partido deles próprios. Nojento, mas real.
A compaixão é um dos valores que mais defendo em meus textos. Quando ocorreram as tragédias na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, vi amigos meus serem vitimados, e a todo momento eu pensava que poderia ter sido comigo. Foram apenas contingências do destino que me fizeram morar em uma área onde não existe esse risco. Da mesma forma me sinto com relação aos moradores da Região Serrana. Por isso peço: todos aqueles que puderem ajudar, façam, e façam segundo suas próprias possibilidades. Afinal, como dizia o grande e saudosíssimo Herbert de Souza, o Betinho, “quem tem fome tem pressa”. Mas essa não é a única razão para sermos solidários. Não podemos esquecer de que não se trata somente de satisfazer necessidades materiais. Os donativos vindos de pessoas comuns faz as vítimas perceberem que alguém se importa com eles. E isso é com certeza uma das poucas coisas que podem lhes trazer algum tipo de consolo.
Ajudemos com todas as nossas forças. Façamos tudo o que estiver ao nosso alcance. Isso é compaixão. Isso é cristão. Isso vem de Deus. Mas não fiquemos nisso! Vamos cobrar de nossas autoridades por políticas públicas que tragam a solução definitiva para esse e para outros problemas que nos afligem. Lembremos: amanhã as vítimas podem ser nós mesmos, ou as pessoas que amamos. Isso também é compaixão, além de ser justiça. Isso também é cristão. Isso também vem de Deus.


quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

POR QUE OS BONS SOFREM?



A vida é uma escola onde o viver é o livro e o tempo o professor
Onde alguns são sábios porém até hoje ninguém se formou
A única certeza é que o dia do acerto já está pra vir
Prepare a sua alma pois na hora certa você vai ouvir
(da canção "O Profeta", de Lúcio Barbosa, gravada por Zé Geraldo)
 
           Jó é um dos mais fascinantes livros de todo o Velho Testamento. O texto se inicia com Deus recebendo seus “filhos” (os anjos) em sua presença, numa espécie de “audiência pública celestial”. Entre os filhos de Deus, surge a famosa figura de Satanás. Já no início da leitura nos deparamos com uma questão intrigante: se Satanás era realmente a personificação do mal, o grande inimigo de Deus, como postulam o judaísmo tardio e quase todo o cristianismo histórico, por que razão ele não foi expulso dali? Muito contrariamente a isso, Satanás é simplesmente tratado como mais um dos filhos de Deus!
Na verdade, Satanás só começou a se tornar a figura que conhecemos hoje quando Israel esteve sob dominação persa. O Zoroastrismo, religião predominante na Pérsia àquela época, concebia o universo como o palco de uma luta cósmica entre dois deuses igualmente poderosos, um bom e outro mal. A influência do Zoroastrismo no Judaísmo fez com que Satanás fosse “promovido” a esse posto de “divindade do mal”.
           Em Jó, Satanás é apenas o agente da dúvida. Após ser indagado acerca dos lugares por onde ele tinha passado, Satanás responde a Deus que retornava de uma peregrinação pela Terra, onde teve a oportunidade de observar os seres humanos. Deus imediatamente lhe pergunta se ele havia visto Jó, um homem bom e religioso, reto e justo aos olhos divinos. Satanás introduz um questionamento: não seria Jó temente a Deus apenas por ser rico e abençoado? Caso fosse tirado de Jó tudo o que ele possuísse, ele não amaldiçoaria a Deus? Aposta feita, Deus permite a Satanás voltar à Terra e destruir tudo o que Jó possuísse. Única condição: o próprio Jó nada deveria sofrer.
           Se realmente fosse o grande inimigo de Deus, Satanás provavelmente desobedeceria sua ordem. Mas curiosamente, ele age exatamente como Deus ordena, tirando de Jó seus bens, seu gado, seus servos, matando seus filhos, e deixando viva apenas sua mulher. E esta só faz aconselhá-lo a amaldiçoar seu Deus e morrer em seguida. Mas Jó permanece fiel, dizendo que tudo o que ele possuía fora dado por Deus, e pelo mesmo Deus poderia ser tomado de volta, a qualquer momento.
Retornando à “assembléia celestial”, Satanás retruca a Deus que Jó não O amaldiçoou porque seu corpo não fora tocado. Novamente o anjo da dúvida recebe permissão para afligir a Jó, imputando-lhe toda sorte de doenças. E novamente uma condição é imposta: Jó deveria permanecer vivo. E mais uma vez as ordens de Deus são cumpridas à risca.
           A partir daí, o livro passa a ser escrito em versos, um longo poema, onde Jó recebe a visita de três amigos. Os quatro, então, iniciam uma reflexão filosófica profunda, onde os três amigos sugeriam que Jó teria cometido algum tipo de pecado, pelo qual ele estava sendo barbaramente castigado. Não haveria outra explicação para tanta desgraça. Jó, por sua vez, alegava não ter feito absolutamente nada de errado, e limitava-se a lamentar sua triste situação. O fim do livro volta ao texto em prosa, fazendo Deus em pessoa surgir diante dos quatro debatedores. Deus então afirma sua soberania sobre todas as criaturas. Não havia a menor importância se Jó havia cometido algum pecado ou não: o que estava acontecendo servia apenas para mostrar que a vontade divina sempre prevaleceria, a despeito de qualquer outra coisa. E isso não deveria ser questionado. Após essa lição, Deus restitui a Jó todos os bens perdidos, em quantidades ainda maiores das anteriores.
           Evidentemente, temos aqui não um registro histórico, mas sim um mito. Quase toda boa teologia admite que Jó provavelmente nunca existiu. Mas o mito não é exatamente uma mentira. Ele é uma narrativa, muitas vezes fantástica, que encerra um ou mais ensinamentos, esses sim reais. Mas o livro de Jó não trata de Deus permitindo que um servo seu seja castigado injustamente, apenas para atender a meros caprichos de um ser malvado que é pura dúvida. Jó é um profundo tratado filosófico, cujo tema central é: por que os justos frequentemente sofrem, enquanto muitas vezes os perversos prosperam?
Nós vivemos em um mundo físico, cujas leis são implacáveis. A natureza parece agir de forma cega: se duas pessoas se atirarem do alto de um prédio, as duas provavelmente morrerão espatifadas no chão. Não importa se uma delas é uma pessoa boa, e a outra um criminoso: a natureza vai agir da mesma forma com ambos. “Dura Lex, sed Lex”, assim funciona o universo. As leis da Física não mudam por causa do caráter dos seres humanos. Mas a despeito disso nós, seres humanos, temos a inclinação para explicar os fatos dando-lhes sempre um sentido no tempo e no espaço, um significado e uma finalidade. Não vemos a existência como um mero encadeamento de causa e efeito; procuramos sim, sentido, significado, explicações metafísicas para tudo o que acontece. Jung dá a essa tendência o nome de “Princípio Teleológico”, em contraposição ao Princípio Causal das ciências naturais.
Com esse raciocínio, passamos a entender a vida de forma meritocrática. Se algo de bom nos acontece, isso de deve ao fato de termos agido bem. Por outro lado, se nos ocorre o mal, só pode ser porque agimos mal. A ideia de um Deus justo parece exigir uma conclusão desse tipo. A maior parte das religiões “evolucionistas” (budismo, hinduísmo, kardecismo etc) propõe esse ensinamento de forma clara, e atribuem tudo o que acontece a um indivíduo aos atos por ele praticados em algum momento passado, seja nesta vida, seja em alguma vida anterior. E assim como ocorre com as leis da Física, essa lei espiritual, conhecida como “Lei do Karma”, age de forma cega, com uma importante diferença: enquanto a Física age da mesma forma para cada situação, o Karma age da mesma forma para cada intenção. Em suma, segundo essa forma de pensar, o Karma afirma que todo bem será recompensado com outro bem, e todo mal com outro mal. Mas essa é uma forma equivocada de se entender o sentido original de Karma. A Lei do Karma nada mais é do que uma forma espiritual, religiosa e não científica da lei de causa e efeito da Física. Essa lei simplesmente diz que “a cada ação corresponde uma reação de mesma intensidade, mesma direção e sentido contrário”. Ou seja, todo ato praticado produz uma consequência, mas o valor dessa consequência independe da intenção do ato. A lógica da meritocracia surge aqui para dar conta de alegrias e sofrimentos aparentemente sem razão, diante da ideia de um Deus (ou muitos deuses) justos.
Nem o cristianismo escapou dessa lógica, e com que frequência ouvimos as pessoas citarem palavras de Jesus ou de Paulo, nas quais eles afirmam que Deus recompensará ou punirá o homem segundo seus atos! Quantas vezes não dizemos, diante de uma situação adversa, algo como “mas o que é que eu fiz para merecer isso?”. O cristão acaba agindo como os três amigos de Jó: se lhe acontece algo bom, ele se ufana de ter agido bem, e estar sendo premiado por Deus; se lhe ocorre a desgraça, ele vasculha seus próprios atos em busca de pecados, já que só é capaz de entender as tribulações como punição por erros cometidos. Mas Jesus pensava assim? No evangelho de João, temos uma passagem emblemática dessa questão: “E passando Jesus, viu um homem cego de nascença. Perguntaram-lhe os seus discípulos: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Respondeu Jesus: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi para que nele se manifestem as obras de Deus” (Jo 9:1-3). Jesus foi claro: o cego nasceu assim para um dia ser curado, e com isso manifestar o amor de Deus. Toda cura promovida por Jesus é um anúncio de um Reino de Deus onde não haverá mais doença. Para o Mestre, o sofrimento não é punição, seu valor é pedagógico. Deus permite o sofrimento, mesmo aquele sem explicação e aparentemente injusto, para que aprendamos com ele. Quando Jesus diz que haverá uma compensação para todos os atos humanos, ele não está se referindo a punições ou prêmios “pagos” nessa vida, mas sim em um restabelecimento da justiça divina no cosmo, quando a criação será restaurada. “Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme as suas obras” (Mt 16:27). Em outras palavras, a justa retribuição de Deus não é para essa vida. E mesmo essa retribuição não inclui punições, uma vez que em Cristo Deus se reconciliou e levou o perdão a toda a humanidade.
Essa é a intenção de Jó: mostrar que nem sempre a justiça divina é clara, que os bons podem sofrer, e os maus podem ser abençoados. Durante dois capítulos do livro (38 e 39), Deus afirma sua soberania e sua infinitude, contrapondo-os à finitude humana. Jó reconhece isso, sabe que Deus pode fazer o que quiser. Mas e Jesus? O Mestre afirma que Deus “faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5:45). As leis da natureza, criadas por Deus, são as mesmas para todos.
Como já dito em linhas anteriores, Jesus busca sempre o caráter pedagógico do sofrimento “Estas coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16:33). Deus não nos pune por nossos pecados, afinal, todo pecado humano recebe seu perdão em Jesus Cristo. Como agir então diante do sofrimento? Tentemos parar de procurar em nosso passado pecados que possam justificar a dor, e olhemos nosso sofrimento como um professor, um agente de transformação divinamente constituído, cuja intenção é nos fazer tomar uma nova atitude, assumir uma outra postura diante da vida. Procuremos enxergar o que Deus quer nos ensinar através do sofrimento. Como fazer isso? Somente através da Fé. Fé com “F” maiúsculo, não uma mera adesão a um sistema de crenças. Fé como entrega, descrita na Epístola aos Romanos como a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem (Rm 11:1), e definida por Kierkegaard como o mecanismo através do qual somos capazes de superar os limites de nossa racionalidade. Quando perguntado sobre que dom gostaria de receber, o Rei Salomão pede a Deus sabedoria. Jesus, por sua vez, nos sugeriria pedir Fé. A sabedoria no máximo nos faz aceitarmos com serenidade os limites de nossa racionalidade, enquanto a Fé nos permite superá-los. E Fé só existe na sabedoria. Sem sabedoria, Fé é fanatismo. Mas sem Fé, sabedoria é apenas inteligência. E a pura inteligência, no fim das contas, é maldição. E se pensarmos bem, a Fé de verdade sempre produz a sabedoria, mas o oposto nem sempre acontece.
Só seremos verdadeiramente sábios quando, por intermédio da Fé, pudermos ver, em cada sofrimento, a presença de Deus, sempre nos ensinando sobre seu Amor e seu Perdão, e nos dando a chance de realizarmos uma ação realmente transformadora em nossas vidas. Nada de punição: a justiça cega é apenas vingança, e o Pai não é vingativo. Deus nos ama, mesmo quando nos faz sofrer.