quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

POR QUE OS BONS SOFREM?



A vida é uma escola onde o viver é o livro e o tempo o professor
Onde alguns são sábios porém até hoje ninguém se formou
A única certeza é que o dia do acerto já está pra vir
Prepare a sua alma pois na hora certa você vai ouvir
(da canção "O Profeta", de Lúcio Barbosa, gravada por Zé Geraldo)
 
           Jó é um dos mais fascinantes livros de todo o Velho Testamento. O texto se inicia com Deus recebendo seus “filhos” (os anjos) em sua presença, numa espécie de “audiência pública celestial”. Entre os filhos de Deus, surge a famosa figura de Satanás. Já no início da leitura nos deparamos com uma questão intrigante: se Satanás era realmente a personificação do mal, o grande inimigo de Deus, como postulam o judaísmo tardio e quase todo o cristianismo histórico, por que razão ele não foi expulso dali? Muito contrariamente a isso, Satanás é simplesmente tratado como mais um dos filhos de Deus!
Na verdade, Satanás só começou a se tornar a figura que conhecemos hoje quando Israel esteve sob dominação persa. O Zoroastrismo, religião predominante na Pérsia àquela época, concebia o universo como o palco de uma luta cósmica entre dois deuses igualmente poderosos, um bom e outro mal. A influência do Zoroastrismo no Judaísmo fez com que Satanás fosse “promovido” a esse posto de “divindade do mal”.
           Em Jó, Satanás é apenas o agente da dúvida. Após ser indagado acerca dos lugares por onde ele tinha passado, Satanás responde a Deus que retornava de uma peregrinação pela Terra, onde teve a oportunidade de observar os seres humanos. Deus imediatamente lhe pergunta se ele havia visto Jó, um homem bom e religioso, reto e justo aos olhos divinos. Satanás introduz um questionamento: não seria Jó temente a Deus apenas por ser rico e abençoado? Caso fosse tirado de Jó tudo o que ele possuísse, ele não amaldiçoaria a Deus? Aposta feita, Deus permite a Satanás voltar à Terra e destruir tudo o que Jó possuísse. Única condição: o próprio Jó nada deveria sofrer.
           Se realmente fosse o grande inimigo de Deus, Satanás provavelmente desobedeceria sua ordem. Mas curiosamente, ele age exatamente como Deus ordena, tirando de Jó seus bens, seu gado, seus servos, matando seus filhos, e deixando viva apenas sua mulher. E esta só faz aconselhá-lo a amaldiçoar seu Deus e morrer em seguida. Mas Jó permanece fiel, dizendo que tudo o que ele possuía fora dado por Deus, e pelo mesmo Deus poderia ser tomado de volta, a qualquer momento.
Retornando à “assembléia celestial”, Satanás retruca a Deus que Jó não O amaldiçoou porque seu corpo não fora tocado. Novamente o anjo da dúvida recebe permissão para afligir a Jó, imputando-lhe toda sorte de doenças. E novamente uma condição é imposta: Jó deveria permanecer vivo. E mais uma vez as ordens de Deus são cumpridas à risca.
           A partir daí, o livro passa a ser escrito em versos, um longo poema, onde Jó recebe a visita de três amigos. Os quatro, então, iniciam uma reflexão filosófica profunda, onde os três amigos sugeriam que Jó teria cometido algum tipo de pecado, pelo qual ele estava sendo barbaramente castigado. Não haveria outra explicação para tanta desgraça. Jó, por sua vez, alegava não ter feito absolutamente nada de errado, e limitava-se a lamentar sua triste situação. O fim do livro volta ao texto em prosa, fazendo Deus em pessoa surgir diante dos quatro debatedores. Deus então afirma sua soberania sobre todas as criaturas. Não havia a menor importância se Jó havia cometido algum pecado ou não: o que estava acontecendo servia apenas para mostrar que a vontade divina sempre prevaleceria, a despeito de qualquer outra coisa. E isso não deveria ser questionado. Após essa lição, Deus restitui a Jó todos os bens perdidos, em quantidades ainda maiores das anteriores.
           Evidentemente, temos aqui não um registro histórico, mas sim um mito. Quase toda boa teologia admite que Jó provavelmente nunca existiu. Mas o mito não é exatamente uma mentira. Ele é uma narrativa, muitas vezes fantástica, que encerra um ou mais ensinamentos, esses sim reais. Mas o livro de Jó não trata de Deus permitindo que um servo seu seja castigado injustamente, apenas para atender a meros caprichos de um ser malvado que é pura dúvida. Jó é um profundo tratado filosófico, cujo tema central é: por que os justos frequentemente sofrem, enquanto muitas vezes os perversos prosperam?
Nós vivemos em um mundo físico, cujas leis são implacáveis. A natureza parece agir de forma cega: se duas pessoas se atirarem do alto de um prédio, as duas provavelmente morrerão espatifadas no chão. Não importa se uma delas é uma pessoa boa, e a outra um criminoso: a natureza vai agir da mesma forma com ambos. “Dura Lex, sed Lex”, assim funciona o universo. As leis da Física não mudam por causa do caráter dos seres humanos. Mas a despeito disso nós, seres humanos, temos a inclinação para explicar os fatos dando-lhes sempre um sentido no tempo e no espaço, um significado e uma finalidade. Não vemos a existência como um mero encadeamento de causa e efeito; procuramos sim, sentido, significado, explicações metafísicas para tudo o que acontece. Jung dá a essa tendência o nome de “Princípio Teleológico”, em contraposição ao Princípio Causal das ciências naturais.
Com esse raciocínio, passamos a entender a vida de forma meritocrática. Se algo de bom nos acontece, isso de deve ao fato de termos agido bem. Por outro lado, se nos ocorre o mal, só pode ser porque agimos mal. A ideia de um Deus justo parece exigir uma conclusão desse tipo. A maior parte das religiões “evolucionistas” (budismo, hinduísmo, kardecismo etc) propõe esse ensinamento de forma clara, e atribuem tudo o que acontece a um indivíduo aos atos por ele praticados em algum momento passado, seja nesta vida, seja em alguma vida anterior. E assim como ocorre com as leis da Física, essa lei espiritual, conhecida como “Lei do Karma”, age de forma cega, com uma importante diferença: enquanto a Física age da mesma forma para cada situação, o Karma age da mesma forma para cada intenção. Em suma, segundo essa forma de pensar, o Karma afirma que todo bem será recompensado com outro bem, e todo mal com outro mal. Mas essa é uma forma equivocada de se entender o sentido original de Karma. A Lei do Karma nada mais é do que uma forma espiritual, religiosa e não científica da lei de causa e efeito da Física. Essa lei simplesmente diz que “a cada ação corresponde uma reação de mesma intensidade, mesma direção e sentido contrário”. Ou seja, todo ato praticado produz uma consequência, mas o valor dessa consequência independe da intenção do ato. A lógica da meritocracia surge aqui para dar conta de alegrias e sofrimentos aparentemente sem razão, diante da ideia de um Deus (ou muitos deuses) justos.
Nem o cristianismo escapou dessa lógica, e com que frequência ouvimos as pessoas citarem palavras de Jesus ou de Paulo, nas quais eles afirmam que Deus recompensará ou punirá o homem segundo seus atos! Quantas vezes não dizemos, diante de uma situação adversa, algo como “mas o que é que eu fiz para merecer isso?”. O cristão acaba agindo como os três amigos de Jó: se lhe acontece algo bom, ele se ufana de ter agido bem, e estar sendo premiado por Deus; se lhe ocorre a desgraça, ele vasculha seus próprios atos em busca de pecados, já que só é capaz de entender as tribulações como punição por erros cometidos. Mas Jesus pensava assim? No evangelho de João, temos uma passagem emblemática dessa questão: “E passando Jesus, viu um homem cego de nascença. Perguntaram-lhe os seus discípulos: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Respondeu Jesus: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi para que nele se manifestem as obras de Deus” (Jo 9:1-3). Jesus foi claro: o cego nasceu assim para um dia ser curado, e com isso manifestar o amor de Deus. Toda cura promovida por Jesus é um anúncio de um Reino de Deus onde não haverá mais doença. Para o Mestre, o sofrimento não é punição, seu valor é pedagógico. Deus permite o sofrimento, mesmo aquele sem explicação e aparentemente injusto, para que aprendamos com ele. Quando Jesus diz que haverá uma compensação para todos os atos humanos, ele não está se referindo a punições ou prêmios “pagos” nessa vida, mas sim em um restabelecimento da justiça divina no cosmo, quando a criação será restaurada. “Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme as suas obras” (Mt 16:27). Em outras palavras, a justa retribuição de Deus não é para essa vida. E mesmo essa retribuição não inclui punições, uma vez que em Cristo Deus se reconciliou e levou o perdão a toda a humanidade.
Essa é a intenção de Jó: mostrar que nem sempre a justiça divina é clara, que os bons podem sofrer, e os maus podem ser abençoados. Durante dois capítulos do livro (38 e 39), Deus afirma sua soberania e sua infinitude, contrapondo-os à finitude humana. Jó reconhece isso, sabe que Deus pode fazer o que quiser. Mas e Jesus? O Mestre afirma que Deus “faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5:45). As leis da natureza, criadas por Deus, são as mesmas para todos.
Como já dito em linhas anteriores, Jesus busca sempre o caráter pedagógico do sofrimento “Estas coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16:33). Deus não nos pune por nossos pecados, afinal, todo pecado humano recebe seu perdão em Jesus Cristo. Como agir então diante do sofrimento? Tentemos parar de procurar em nosso passado pecados que possam justificar a dor, e olhemos nosso sofrimento como um professor, um agente de transformação divinamente constituído, cuja intenção é nos fazer tomar uma nova atitude, assumir uma outra postura diante da vida. Procuremos enxergar o que Deus quer nos ensinar através do sofrimento. Como fazer isso? Somente através da Fé. Fé com “F” maiúsculo, não uma mera adesão a um sistema de crenças. Fé como entrega, descrita na Epístola aos Romanos como a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem (Rm 11:1), e definida por Kierkegaard como o mecanismo através do qual somos capazes de superar os limites de nossa racionalidade. Quando perguntado sobre que dom gostaria de receber, o Rei Salomão pede a Deus sabedoria. Jesus, por sua vez, nos sugeriria pedir Fé. A sabedoria no máximo nos faz aceitarmos com serenidade os limites de nossa racionalidade, enquanto a Fé nos permite superá-los. E Fé só existe na sabedoria. Sem sabedoria, Fé é fanatismo. Mas sem Fé, sabedoria é apenas inteligência. E a pura inteligência, no fim das contas, é maldição. E se pensarmos bem, a Fé de verdade sempre produz a sabedoria, mas o oposto nem sempre acontece.
Só seremos verdadeiramente sábios quando, por intermédio da Fé, pudermos ver, em cada sofrimento, a presença de Deus, sempre nos ensinando sobre seu Amor e seu Perdão, e nos dando a chance de realizarmos uma ação realmente transformadora em nossas vidas. Nada de punição: a justiça cega é apenas vingança, e o Pai não é vingativo. Deus nos ama, mesmo quando nos faz sofrer.