sexta-feira, 18 de março de 2011

A FORÇA DO AMOR DIANTE DA FRAGILIDADE DA VIDA: UMA REFLEXÃO.

Com que rosto ela virá?
Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer?
Ou será que ela vai me pegar no meio do copo de uísque?
Na música que eu deixei para compor amanhã?
Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro?
Virá antes de eu encontrar a mulher, a mulher que me foi destinada,
E que está em algum lugar me esperando
Embora eu ainda não a conheça?

Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo,mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida

Oh morte, tu que és tão forte,
Que matas o gato, o rato e o homem.
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar

(da canção “Canto Para Minha Morte”, de Rail Seixas e Paulo Coelho)

            Um terremoto no fundo do Oceano Pacífico provoca uma tsunami... poucos segundos de uma revolta tectônica ceifam milhares de vidas em apenas mais uns poucos segundos... e tudo isso ocorreu no Japão, a mais bem sucedida das simbioses entre passado e futuro compartilhando o mesmo tempo presente, a melhor das alianças socio-históricas efetuadas entre uma cultura milenar fortemente arraigada e calorosamente cultuada, e uma racionalidade científica friamente organizada e metodicamente colocada em prática. Em nossas terras, onde a carência de uma visão de futuro, e a nossa já crônica irresponsabilidade histórica dão as ordens que regem nossa caminhada, sempre aos trancos e barrancos, rumo a um futuro inalcançável, estrategicamente camufladas em fantasias de carnaval, micaretas, discussões sobre futebol e “reality shows” de TV, a tragédia com certeza adquiriria proporções ainda mais grotescas.
            O planeta Terra como um todo foi abalado, nossa Mãe Gaia jamais será a mesma. O impacto do terremoto desviou o eixo da Terra em dez centímetros. Parece pouco. Os olhos humanos, nus ou vestidos de lentes telescópicas, sequer serão capazes de notar, mas até mesmo o céu, depois desses poucos segundos de horror, também já não é mais o mesmo, os astros celestes mudaram de lugar. Mas quais serão as possíveis consequências dessa alteração para a saúde de Gaia, num futuro próximo ou mesmo distante? Todas as possíveis respostas estão ainda ostentando títulos de meras especulações, e a verdade não passa de pontencialidade, de puro poder-vir-a-ser, subsistindo apenas na mente do Criador.
            Pequeno, é como me sinto. Extremamente pequeno e frágil. Um insignificante grão de poeira vagando nesse imenso deserto chamado Universo. Apesar de ser uma máquina extremamente complexa, cujo modo de funcionamento ainda não foi totalmente desvendado, mesmo milênios após o nascimento da ciência filha de Hipócrates, meu corpo não teria a menor chance de sobreviver, não fossem uma enorme gama de fatores favoráveis, reunidos em torno de Gaia, que a tornam um lar aconchegante, quase um berço, adornado pelas mais macias colchas, e balançando suavemente no espaço, embalado pela doce voz de um Deus-Pai que também é Deus-Mãe. Um acalanto: é como ouço cada som da natureza.
            Abandonem-me em qualquer outro ponto do Cosmos, e em pouquíssimos instantes a vida fugiria apavorada de meu corpo, sendo este imadiatamente destroçado pelas forças mais hostis do universo, tal qual a presa sendo dilacerada por um bando de mandíbulas e dentes de uma alcateia faminta. A não ser que meu corpo estivesse hermeticamente protegido por trajes espaciais e especiais. E estes nada mais são do que subterfúgios da ciência, criados com o propósito de nos permitir carregarmos conosco, por onde quer que passemos, as mesmas condições carinhosas de nossa mãe Gaia. Só assim podemos escrutinar a Criação para além dos limites de nosso Berço Cósmico.
            A Terra é o único lugar conhecido onde seres como nós podem sobreviver. Nossa mãe, nosso lar, nosso berço ou ninho. E o que fazer quando nosso próprio berço, ao invés de acalentar um sono tranquilo, nos sacode violentamente, como se quisesse simplesmente nos arremessar para fora? Como proceder quando nossa própria mãe deixa de ser nossa protetora, para se tornar, ainda que por um breve momento, a mais cruel das madrastas de contos de fada? Talvez essa seja a razão de nossa perplexidade diante de uma tragédia de tal magnitude. A quem iremos imputar culpa, nesse caso? O homem, pelos estragos que vêm causando em nosso planeta desde quando adquiriu capacidade de raciocínio abstrato? A natureza, por agir de forma cega, num mero encadeamento de causas e efeitos? Um iminente fim do mundo, apregoado desde a mais obscura antiguidade do homem, mas que não cansa de nos pregar peças, nunca comparecendo nas datas em que ele é esperado? Demônios, forças do mal tão em voga nos discursos de nossos mais variados fundamentalismos religiosos? Ou devemos mesmo culpar a Deus, como muitos acabam fazendo, para logo depois assumir o funesto ateísmo prático ou um agnosticismo despretensioso? Na verdade, fora dos limites do campo da fé, essa é uma indagação para a qual simplesmente não existe resposta.
            E desse modo nos damos conta de como a vida é frágil. Cada uma das pessoas vitimadas pelo furor tectônico, apenas alguns minutos antes, levavam suas vidas normais, seus afazeres, sonhos e dores comuns, cotidianos. O mesmo pode ser dito dos sobreviventes. Em uma fração de tempo, milhares de existências são modificadas de forma definitiva. Alguns por terem a trajetória bruscamente interrompida, outros por se verem de repente obrigados a remodelar toda a sua percepção do mundo, sem seus bens materiais, e pior, sem seus entes queridos. Bens podem ser repostos, pessoas não. São perdas absolutamente irreparáveis nesta existência. Não há alternativa, é aceitar isso ou aceitar isso. Pode parecer cruel, mas antes de tudo é real. Cada um de nós pode, sem o saber, estar vivenciando os últimos momentos da vida. Que postura, então, devemos adotar diante de tão terrível constatação?  O livro de Eclesiastes, do Velho Testamento da Bíblia, um dos textos mais sábios já escritos por mãos humanas, em seus dois últimos capítulos, nos dá uma esplendorosa lição sobre como devemos encarar a fragilidade da vida, e a virtual total falta de controle que temos sobre os processos naturais:

Lança o teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o acharás. Reparte com sete, e ainda até com oito, porque não sabes que mal haverá sobre a terra. Estando as nuvens cheias, derramam a chuva sobre a terra, e caindo a árvore para o sul, ou para o norte, no lugar em que a árvore cair ali ficará. Quem observa o vento, nunca semeará, e o que olha para as nuvens nunca segará. Assim como tu não sabes qual o caminho do vento, nem como se formam os ossos no ventre da mulher grávida, assim também não sabes as obras de Deus, que faz todas as coisas. Pela manhã semeia a tua semente, e à tarde não retires a tua mão, porque tu não sabes qual prosperará, se esta, se aquela, ou se ambas serão igualmente boas. Certamente suave é a luz, e agradável é aos olhos ver o sol. Porém, se o homem viver muitos anos, e em todos eles se alegrar, também se deve lembrar dos dias das trevas, porque hão de ser muitos. Tudo quanto sucede é vaidade. Alegra-te, jovem, na tua mocidade, e recreie-se o teu coração nos dias da tua mocidade, e anda pelos caminhos do teu coração, e pela vista dos teus olhos; sabe, porém, que por todas estas coisas te trará Deus a juízo. Afasta, pois, a ira do teu coração, e remove da tua carne o mal, porque a adolescência e a juventude são vaidade. Lembra-te também do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias, e cheguem os anos dos quais venhas a dizer: Não tenho neles contentamento; Antes que se escureçam o sol, e a luz, e a lua, e as estrelas, e tornem a vir as nuvens depois da chuva; No dia em que tremerem os guardas da casa, e se encurvarem os homens fortes, e cessarem os moedores, por já serem poucos, e se escurecerem os que olham pelas janelas; E as portas da rua se fecharem por causa do baixo ruído da moedura, e se levantar à voz das aves, e todas as filhas da música se abaterem. Como também quando temerem o que é alto, e houver espantos no caminho, e florescer a amendoeira, e o gafanhoto for um peso, e perecer o apetite; porque o homem se vai à sua casa eterna, e os pranteadores andarão rodeando pela praça; Antes que se rompa o cordão de prata, e se quebre o copo de ouro, e se despedace o cântaro junto à fonte, e se quebre a roda junto ao poço, E o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu. Vaidade de vaidades, diz o pregador, tudo é vaidade.

Vaidade, aqui, surge de uma palavra hebraica cujo significado real é “sem utilidade prática”. Como se tudo no mundo, ao final das contas, não tivesse valor algum frente ao inevitável encontro com a morte. O sábio pregador nos brinda com algumas importantes admoestações. Os ciclos naturais de vida e de morte são inexoráveis, e seguem seu fluxo, a despeito de nossas ações ou nossos desejos. Não devemos, contudo, nos furtar de tomar atitudes frente ao aparente absurdo do existir, temos um papel a exercer na sinfonia cósmica. Possuímos o direito, e de certa forma o dever, de usufruir dos ciclos naturais, de seguir o curso dado pelo coração, timoneiro da nau que somos, ainda que à deriva no mar da vida. E novamente, nossas atitudes não importam: os ciclos naturais podem ser perenes, mas seus elementos componentes têm, todos eles, um fim inescapável, e isso nos inclui. Todos os resultados de nossas ações ao longo da vida permanecerão aqui, talvez como testemunhos, retratos do ser que realmente fomos, mas nós mesmos seremos devolvidos ao pó de onde viemos. A vida, nesse sentido, é apenas um empréstimo.
Mas o pregador nos adverte acerca de questões mais importantes. Por detrás dessa lógica quase estóica, sorri para nós, com o mais belo sorriso de pai-mãe, o Criador de todas as coisas. Deus nos revela, através de uma Criação bela, perfeita, ainda que por vezes hostil, o único valor que realmente não é “vaidade”, que tem não apenas utilidade, mas que permanece antes, durante e depois de todos os ciclos naturais do Cosmo: o Amor. Vivamos a vida que nos couber viver, cada um de nós tem uma cruz e uma rosa a carregar ao longo da existência. E o Amor é a principal força motriz a nos fazer suportar as mazelas existenciais. O autor da primeira espístola de João afirma claramente: “aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor”. Deus não apenas nos ama, simplesmente, Ele na verdade é “todo-amar”. A própria Criação é um ato de amor, nossa existência é um ato de amor. Deus nos criou para manisfestar seu Amor para com algo além de Si mesmo. Para Paulo, as três grandes virtudes dadas por Cristo seriam a fé, a esperança e o amor. Mas para ele, o amor era a mais importante das três virtudes, porque para ele, fé e esperança apontam para uma confiança nas promessas de Deus de instauração de seu Reino, mas uma confiança projetada no futuro, e não mais serão necessárias quando o adentrarmos. Mas o Amor, esse continuará sendo exercido entre os seres humanos e a divindade. O Amor existe desde sempre, uma vez que Deus é Amor. O Amor se exerce ontem, hoje e para sempre.
A tragédia no Japão nos mostrou como somos frágeis e pequeninos diante do universo. Vivamos, então, conscientes da fragilidade da vida. Passemos nosso existir usufruindo de um universo dado por Deus, sem contudo nos apegarmos a ele, posto ser nossa vida não apenas frágil, como também breve. Mas acima de tudo vivamos pela única coisa eterna que existe no mundo. Vivamos por amor. Porque por mais insignificantes que possamos ser, Aquele que é puro Amor nos ama.