quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Jesus x Noel ou O Verdadeiro Sentido do Natal



E então é natal (e a guerra terminou...)
Para o fraco e para o forte (...se você quiser)
Para o rico e para o pobre
O mundo é tão errado
(Tradução de trecho da canção “Happy Xmas, War is Over” – Feliz Natal, a Guerra Acabou, de John Lennon)

           Papai Noel tem uma origem curiosa. Um jovem chamado Nicolau (São Nicolau, para os católicos e ortodoxos orientais), nasceu no século 3, em uma cidade grega chamada Patras. Quando seus pais morreram, ele doou toda sua fortuna para os pobres, e ingressou na vida religiosa. Diz a lenda que, na cidade de Nicolau, viviam três irmãs que não podiam se casar, em virtude de serem muito pobres, e não terem como pagar o dote à família do noivo. O pai delas decidiu então vendê-las como escravas, conforme elas fossem atingindo a idade adulta. Quando a primeira filha estava para ser vendida, Nicolau, ainda jovem, soube do fato, e jogou um saco cheio de moedas de ouro pela chaminé da casa, que caiu dentro de uma meia colocada ali para secar. O mesmo ocorreu com a segunda e a terceira filha, e assim todas puderam se casar. Apenas após a terceira filha ter recebido o “presente”, o pai soube quem era o misterioso benfeitor, e passou a pregar sobre sua bondade. Como Nicolau se transformou depois na figura psicodélica de um velho de longas barbas brancas, vestindo um pijama e um gorro vermelhos, morando no Pólo Norte, e guiando um trenó voador puxado por renas, não faço idéia.
Todo Natal é a mesma coisa. A cada esquina um trabalhador desempregado faz bico vestido de Papai Noel, símbolo-mor do consumismo exacerbado tão em voga em nossa sociedade, lembrando-nos de nosso compromisso de comprar, de adquirir bens de consumo sempre e cada vez mais. A mídia nos assola com intensa propaganda, sempre com as palavras de ordem do consumismo. Uma grande loja de departamentos, inclusive, há vários anos vem poluindo nossos ouvidos com a mesma musiquinha irritante. Os Shopping Centers ficam abarrotados de pessoas, surgem placas e cartazes anunciando promoções por todos os lados, e gente, mas muita gente mesmo, comprando e comprando e comprando e comprando. Os produtos da moda disputados à tapa, filas intermináveis para ir ao caixa, e dívidas ainda mais intermináveis por conta das prestações assumidas por se comprar tantas coisas.
 Papai Noel e o Natal se tornaram talvez os maiores ícones do capitalismo. Tanto é que muitos pensam que a cor da roupa do Papai Noel foi escolhida por ser a mesma da logomarca de uma grande multinacional produtora de refrigerantes. Irônico: um jovem que, ao ficar órfão, doou todo seu dinheiro aos pobres, ingressou na vida monástica, e ficou famoso por doar moedas de ouro para moças pobres poderem se casar, se torna o grande símbolo do consumismo desenfreado, do capitalismo selvagem.
            Todo Natal é a mesma coisa. Pessoas se reencontram, trocam presentes e perdões, fazem votos para um Ano-novo que, invariavelmente, imaginam e desejam será melhor do que o ano em curso. E fazem isso com a família, no trabalho, na escola, no clube, enfim, em todos os lugares que freqüentam. Alguns choram, ficam tristes, depressivos, e quase nunca são capazes de dizer o motivo. Comemos aquelas frutas secas importadas do hemisfério norte, altamente gordurosas, a despeito de estarmos em pleno calor de um verão tropical. À meia-noite, abraços e votos de felicidade são distribuídos, ao som de uma imensa orquestra de fogos de artifício. O Natal parece ter poderes mágicos, uma estranha aura, capaz de transformar nossos individualismos, e convertê-los aos mais sublimes altruísmos. Parece ter o poder de nos fazer parar de olhar apenas para nossos próprios umbigos, para voltarmos nossas atenções para nossos semelhantes menos favorecidos. As pessoas fazem e participam de campanhas, fazem doações e mutirões. Alimentos, roupas e presentes são distribuídos em orfanatos, asilos, hospitais, e até nas ruas, para os párias excluídos de nossa máquina social. Por que só no Natal? 




Mas alguém ainda se lembra do que realmente é o Natal? Historicamente, a Igreja Cristã determinou o dia 25 de dezembro como sendo a data de nascimento de Jesus Cristo. Não pretendo aqui entrar no mérito de que muito provavelmente Jesus não nasceu nesse dia; trata-se na verdade da data de nascimento do deus Mitra, divindade muito popular nos tempos de Jesus, cuja vida apresenta uma série de paralelos com a vida de Jesus, e cujo culto apresenta muitas similaridades com o Cristianismo que surgiria logo depois. Para todos os efeitos, consideremos o dia 25 de dezembro como a data simbólica do nascimento de Cristo.
Quase ninguém mais se lembra disso. Para muita gente, o Natal só continua associado ao nascimento de Jesus na hora de montar o presépio, e nem todos montam presépios, especialmente os protestantes, avessos a toda e qualquer forma de arte sacra, à exceção da musica. Magnífica invenção de São Francisco de Assis, o presépio é o resto, a sobra atávica do verdadeiro sentido do Natal. Jesus Cristo, expressão máxima do Amor de Deus para com a humanidade, acaba de nascer. O menino Jesus é o grande símbolo da esperança, do renascimento. Naquele recém-nascido, deitado em uma manjedoura, na companhia de seus pais, dos magos, de alguns animais, pastores e anjos, o milagre é atualizado: Deus está se fazendo homem, para anunciar à humanidade que Ele mesmo, Deus, está propondo sua reconciliação com a raça humana, está anunciando o fim de todo sofrimento, isso que a Igreja chama hoje de “salvação”.
 O sentimento de perdão que fica na moda nos tempos natalinos é fruto do perdão de Deus, anunciado no nascimento de Cristo. Mas Jesus não estabelece tempos, datas ou prazos para o perdão. Segundo o Mestre, não deve haver sequer limites quantitativos para o perdão: ele deve ocorrer sempre que houver a ofensa. Naquele tempo, Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” Jesus Respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (MT 18: 21-22). Isso não significa que devemos perdoar apenas 490 vezes. Jesus apenas parte do uso do número sete feito por Pedro (sete era o número da perfeição, de um ciclo completo, na concepção judaica), para dar um número grande o suficiente para que se perca a conta no meio do caminho. O perdão deve ser infinito. Até porque talvez a ofensa também o seja.
Infelizmente, nem mesmo a figura de Jesus de Nazaré escapou do processo de “papainoelização”, que também vitimou nosso querido São Nicolau. Os movimentos cristãos pentecostais e carismáticos iniciados no século XX, cujas origens remontam às teologias do Destino Manifesto e da Prosperidade, que abençoaram e sacralizaram a fortuna, o acúmulo de capital, alteraram radicalmente a imagem de Cristo. Jesus deixa de ser a expressão máxima do amor de Deus, que se fez homem para proclamar o perdão, para se transformar em uma espécie de “Papai Noel”, ou então numa modalidade qualquer de “gênio da lâmpada”, sempre alerta para satisfazer nossos caprichos mais mesquinhos, sempre disposto a nos suprir de toda sorte de bens materiais, a nos trazer riquezas, especialmente as mais supérfluas. Talvez aí esteja a explicação para esse ar de magia que toma conta de todos no Natal: tomados pelo remorso de sempre buscarmos nossas fortunas pessoais sem nos preocuparmos com o sofrimento de nosso próximo, uma vez por ano, pelo menos, nós conseguimos nos despir de nossos egoísmos, em nome do bem-estar de nosso semelhante. E o que provoca essa transformação tão radical? Para mim, esse é o grande milagre do Natal: a simples contemplação do Menino Jesus, o mero olhar para a doçura daqueles olhinhos infantis nos faz sentir o perdão de Deus, e nos enche de esperança. Assim, passamos a ver o mundo com outros olhos, os mesmos olhos com os quais Deus nos vê. Já afirmei em outra ocasião que o mundo ocidental seria outro se, ao invés das cruzes, os altares de nossas igrejas tivessem manjedouras. Mesmo a morte de Jesus, tão usada pelas igrejas para tentar nos converter à fé pela culpa por Ele ter sofrido em nosso lugar, não seria nada além de um simples martírio, não teria sentido algum, se depois não houvesse a ressurreição. E a ressurreição de Cristo, que prenuncia a ressurreição de todos nós para uma nova vida, é um novo nascimento. A ressurreição é um novo Natal!
Precisamos parar para refletir sobre essa questão tão importante. Jesus jamais esperou datas especiais, muito menos as ocasiões festivas, para fazer o bem, para anunciar o Reino de Deus. Jesus curava, consolava e ensinava sempre que se via diante de alguém que carecia de cura, de consolo ou de ensino, não importando qual fosse o momento. Inclusive durante as famosas “Bodas de Caná”, narradas no Evangelho de João (quando Jesus transforma água em vinho), o Mestre não hesita em atender ao pedido de um necessitado, mesmo sabendo que “ainda não havia chegado a sua hora”. E Jesus nos manda o tempo todo amarmos uns aos outros como Ele nos amou. Essa disposição de ânimo altruísta que toma conta de nós na época do Natal deve nos acompanhar durante todos os dias de nossas vidas. O tempo de fazer o bem é o tempo presente. A hora de socorrermos nosso próximo é agora. E o nosso próximo é qualquer pessoa que esteja ao alcance de nossas mãos amigas. No Natal, nós devemos celebrar a esperança, o amor e o perdão que deveríamos exercer ao longo de todo o ano. A única diferença é que no Natal ninguém vai estranhar se fizermos isso fantasiados de Papai Noel.