quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O ROCK ERROU? MÚSICA E ALIENAÇÃO


Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês
Nos empurraram com os enlatados
Dos U.S.A., de nove as seis.

Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola

Depois de 20 anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

(da canção “Geração Coca-cola”, de Renato Russo e Fê Lemos)
  
                Toda manifestação de cultura popular nasce como uma espécie de porta-voz do povo que lhe dá a luz, reproduzindo a realidade existencial na qual esse povo está imerso. Falando em termos de música (campo da arte do qual tenho mais conhecimento), vemos os mais diversos estilos musicais retratando o dia-a-dia das comunidades onde nascem e vivem os artistas. No Brasil, temos inúmeros exemplos. O baião e o sertanejo nascem cantando a vida no campo, a seca, a fome, a devoção religiosa (notadamente o Catolicismo Popular de matriz ibérica), e a saudade de quem precisou tentar uma vida melhor na cidade grande, às vezes tendo que deixar para trás a família, a mulher e os filhos. O samba retrata a realidade do homem marginalizado nas grandes cidades, o cotidiano das comunidades carentes, a identidade cultural do brasileiro afro-descendente, bem como a discriminação histórica por ele sofrida (assim como originalmente fazia o Blues nos Estados Unidos). Os estilos sulistas celebram as tradições gaúchas, por terem nascido de um povo que teve de deixar seus países de origem para tentar uma vida nova no Brasil, e trazem até hoje consigo o zelo por suas antigas tradições. E mesmo o rock, importado de terras estrangeiras, onde dá voz às importantes transformações sociais, culturais, políticas e até científicas do mundo a partir da segunda metade do século XX, exerce papel semelhante na cultura brasileira. Enfim, como qualquer forma de arte, a música é expressão do imaginário das pessoas dos lugares onde ela é produzida.
                Não há nada pior para uma manifestação artística, em termos da perda de seu valor cultural, do que essa manifestação deixar de ser cultura popular, para se tornar cultura de massa. Pode até ser maravilhoso em termos financeiros para alguns artistas, e principalmente para seus empresários, quando a arte por eles produzida suplanta os limites culturais onde ela é gestada, para atingir o grande público. Teoricamente essa massificação seria benéfica: expandir o modus vivendi de um povo para além de suas fronteiras seria fazer outros indivíduos, que foram formados em culturas diferentes, tomarem conhecimento da realidade sócio-cultural desse povo, e assim outras pessoas passariam a conhecer sua preciosidade cultural, bem como suas mazelas existenciais. Mas na prática não é assim. Sempre que uma determinada manifestação cultural é transformada em cultura de massa, para ser vendida ao grande público, ela passa por uma espécie de “pasteurização cultural”, processo no qual ela perde suas raízes, e se torna uma espécie de “expressão artística genérica universal”. Ela deixa de ter uma identidade cultural própria, e passa a repetir um tema comum já massificado, a fim de poder ser consumida por um público que está habituado a utilizar a arte apenas como mecanismo de entretenimento, e não como forma de conhecer outras expressões culturais.
                Qual seria essa temática genérica escolhida por nossos mecanismos de controle social para substituir as diversas expressões culturais locais? Simplesmente escolheram o amor, e nos convenceram de que o amor é um tema universal e eterno, enquanto as diferentes culturas são locais e temporárias. Assim, o baião e o sertanejo deixam de cantar o homem do campo, o samba deixa de cantar a realidade do negro carente e marginalizado nas grandes cidades, e o rock deixa de cantar as grandes transformações do mundo. Todos passam a falar apenas de amor (só a música sulista segue fiel às suas raízes, mas ela na verdade jamais chegou a ser cultura de massa: a gente só ouve música sulista se viajar até o sul). Mas na verdade, é um amor do tipo “Rede Globo”, também “pasteurizado”. Essa concepção não leva em consideração o fato de que mesmo o amor tem suas diferentes expressões. O amor enquanto sentimento pode até ser universal, mas as formas de se expressar e vivenciar esse sentimento variam no tempo e no espaço (isso por si só é tema para um estudo à parte).
                Existem outras razões para nossos mecanismos de poder quererem eliminar as especificidades das manifestações culturais transformadas em cultura de massa, em nome de um tema único. Uma manifestação artística que atinja o grande público sem perder suas raízes culturais faria com que muitas pessoas tomassem conhecimento de outras culturas. Isso também implicaria em muitas pessoas conhecendo os problemas de quem vive outras realidades culturais, sociais e econômicas, e talvez a conclusão lógica desse intercâmbio cultural fosse: “todo mundo tem problemas dessa natureza, não ocorre apenas comigo”. O resultado seria fatalmente uma cobrança maior por parte do povo, para que as autoridades tomem uma atitude. O povo, quanto mais unido, mais difícil é de ser vencido. Além disso, o próprio indivíduo formado na sociedade onde a manifestação cultural tornada cultura de massa foi gestada, de tanto ouvir a versão “pasteurizada” da arte de seu povo, acaba perdendo sua própria identidade cultural, para assumir a cultura de massa, notadamente alienada, que só sabe falar do “amor de Rede Globo”. Em ambos os casos, nossos mecanismos de poder conseguem ter controle mais efetivo sobre as massas.
                Vamos a alguns exemplos práticos. Começando pelo sertanejo, cito uma canção intitulada “Queimadas”, gravada pela dupla caipira formada pelos irmãos Pena Branca e Xavantinho, ambos já falecidos:

Este chão abençoado
Tão disposto a céu aberto
Esquecido pelo homem
Agora vira um deserto
São pedaços de riqueza
Devorada como a peste
Veio a seca e tomou conta
Do sertão do meu Nordeste

Seu dotô o quê que eu faço
Pra acabar com tanta mágoa
Entre nuvens de poeira
Tudo é seca e não tem água
Na cacimba só tem lama
E o açude virou pó
Nos olhos daquela gente
Corre pranto que faz dó

Minhas vaquinhas morreram
Meu jumento já se foi
Só resta lá na catinga
A carcaça do meu boi
É assim que a gente sente
Lastimando a sorte ingrata
Tenha dó da nossa gente
E ajude um cabeça chata


                Não há como ouvir essa canção sem refletir sobre o problema histórico da seca no nordeste, e é exatamente isso que nossos mecanismos de poder não querem que aconteça. Qual a solução? É simples, basta transformar a música sertaneja em algo parecido com isso:

Te dei o sol, te dei o mar
Pra ganhar seu coração.
Você é raio de saudade,
Meteoro da paixão,
Explosão de sentimentos
Que eu não pude acreditar.
Ah! Como é bom poder te amar!

Depois que eu te conheci fui mais feliz.
Você é exatamente o que eu sempre quis.
Ela se encaixa perfeitamente em mim.
O nosso quebra-cabeça teve fim.

Se for sonho não me acorde;
Eu preciso flutuar,
Pois só quem sonha
Consegue alcançar.

Tão veloz quanto a luz
Pelo universo eu viajei.
Vem! Me guia, me conduz,
Que pra sempre te amarei


                Coloca-se então um cantor jovem e bonitinho, que fará com que as meninas queiram alguém como ele, e com que os meninos queiram ser como ele, para conseguir as meninas. E assim todo mundo só pensa em namorar. Seca no Nordeste? Ninguém nem mais lembra que existe. Luan Santana não tem a menor noção disso, mas ele presta um desserviço à cultura brasileira.
                Agora vamos ao samba. Citarei o samba-enredo da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, do ano de 1988, intitulado “Cem Anos de Liberdade, Realidade e Ilusão”, alusivo ao centenário da assinatura da Lei Áurea:

O negro samba
Negro joga capoeira
Ele é o rei na verde e rosa da Mangueira

Será...
Que já raiou a liberdade
Ou se foi tudo ilusão
Será...
Que a lei áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão
Hoje dentro da realidade
Onde está a liberdade
Onde está que ninguém viu
Moço
Não se esqueça que o negro também construiu
As riquezas do nosso brasil

Pergunte ao criador
Quem pintou esta aquarela
Livre do açoite da senzala
Preso na miséria da favela

Sonhei...
Que zumbi dos palmares voltou
A tristeza do negro acabou
Foi uma nova redenção

Senhor..
Eis a luta do bem contra o mal
Que tanto sangue derramou
Contra o preconceito racial


                Quanta consciência histórica teríamos, e que força ganhariam os movimentos sociais que lutam contra as mais diferentes formas de discriminação, se mais sambas assim fossem compostos? Mas as pessoas ficam mais facilmente manipuláveis se forem marteladas em seus ouvidos coisas como:

Abandonado, assim que eu me sinto longe de você,
Despreparado, meu coração dá pulo perto de você,
E quanto mais o tempo passa, mais aumenta essa vontade,
O que posso fazer?
Se quando beijo outra boca lembro sua voz tão rouca me pedindo pra fazer
Carinho gostoso, amor venenoso

To preocupado, será que não consigo mais te esquecer?
Desesperado, procuro uma forma de não te querer
Mas quando a gente se encontra, o amor sempre apronta
Não consigo conter
Por mais que eu diga que não quero
Toda noite te espero com vontade de fazer
Carinho gostoso, amor venenoso

Faz amor comigo, sem ter hora pra acabar
Mesmo que for só por essa noite
Eu não quero nem saber, quero amar você
Faz amor comigo até o dia clarear
To ligado, sei que vou sofrer
Mas eu não quero nem saber, quero amar você


                E olha que o Exaltasamba faz questão de cometer a heresia de se auto-intitular “Samba de Raiz”. Que Cartola, Noel Rosa, João Nogueira, entre outros que já nos deixaram, não ouçam isso!
                Mas o pior fica por conta do rock. Sempre subversivo por natureza, rebelde por definição, até o rock no Brasil foi transformado em um meloso desfile brega-romântico sem o menor senso estético, sem força nem poesia. Quero citar três trechos de canções do rock dos anos 80, para dar uma idéia de seu poder como agente de transformação. E serão apenas citações de canções pop-rock, de artistas que participaram e participam de programas de fim de ano da Rede Globo. Se eu citasse movimentos mais engajados, como o movimento Punk, a situação seria mais grave. Mas vamos às canções, começando com Cazuza:

Brasil!
Mostra tua cara
Quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil!
Qual é o teu negócio?
O nome do teu sócio?
Confia em mim...

(trecho de “Brasil”)

                Agora passamos a Lobão:

A favela é a nova senzala, correntes da velha tribo
E a sala é a nova cela, prisioneiros nas grades do vídeo
E se o sol ainda nasce quadrado, a gente ainda paga por isso

Eu não quero mais nenhuma chance
Eu não quero mais revanche!
(trecho de “Revanche”)

                E por fim, Ultraje a Rigor. Essa canção foi tema de abertura de novela da Rede Globo. Muita gente a considerou pornográfica, sem perceber que na ironia das figuras de linguagem estava escondida uma seríssima crítica social:

Indecente
É você ter que ficar
Despido de cultura
Daí não tem jeito
Quando a coisa fica dura
Sem roupa, sem saúde
Sem casa, tudo é tão imoral
A barriga pelada
É que é a vergonha nacional

(trecho de “Pelado”)

                Apenas a título de informação: “barriga pelada” quer dizer FOME. Mas o que fizeram com o “bom e velho rock’n’roll”? Dói na alma constatar, mas fizeram isso:

E eu sei que assim talvez seja melhor
Mas não espero ver você voltar
E dizer que podemos recomeçar

E as noites que em claro eu passei
Só pra entender ou enxergar onde eu errei
E de nada valeram depois do fim

E hoje sei (eu sei)
E hoje sei, sei, sei
Não importa mais
Porque não vai, vai, vai
Voltar atrás
O que restou em mim

E não vou mudar e nem tentar entender
O que aconteceu ou vai acontecer
Nossa história teve um fim

E eu sei que assim talvez seja melhor
Mas não espero ver você voltar
E dizer que podemos recomeçar

E hoje estava pensando em você
Em tudo que eu queria te dizer
Mas não tive coragem de falar

E não vou mudar e nem tentar entender
O que aconteceu ou vai acontecer
Nossa história teve um fim


                E a banda Restart ainda imagina que as roupinhas coloridas são um ato de rebeldia? Além de apenas fazer com que eles fiquem parecendo calopsitas gigantes, artistas como David Bowie, Alice Cooper, e no Brasil os Secos e Molhados, já ostentavam aparências bizarras há décadas atrás, mas com uma diferença: a música tinha qualidade, e abordava diversos temas.
                Longe de mim ser contra canções de amor; eu mesmo já compus algumas. Sou contra um artista passar toda uma carreira discorrendo sobre o mesmo tema (não é, Zezé de Camargo?). Eles não sabem falar de outra coisa, não pensam em outra coisa. Será possível que existam pessoas tão limitadas assim? E essa pergunta vale tanto para os produtores quanto para os consumidores desse tipo de música. Até o Axé, ritmo alienado por definição, produto descartável para consumo rápido no Carnaval e nas micaretas, pode ir além. Moraes Moreira gravou uma canção intitulada “Cidadão”, que só não é considerada um Axé porque  foi gravada antes da criação desse rótulo. Eis a letra:

Na mão do poeta
O sol se levanta
E a lua se deita
Na côncava praça
Aponta o poente
O apronte o levante
Crescente da massa

Aos pés do poeta
A raça descansa
De olho na festa
E o céu abençoa
Essa fé tão profana
Oh! Minha gente baiana
Goza mesmo que doa

Abolição
No coração do poeta
Cabe a multidão
Quem sabe essa praça repleta

Navio negreiro já era
Agora quem manda é a galera
Nessa cidade nação
Cidadão
                Meu leitor pode estranhar o fato de eu não citar o funk carioca. Podem me processar, usando a lei que nos obriga a nos referirmos ao funk como cultura (grotesco, isso), mas o funk nunca representou a cultura dos meios onde ele é produzido. Ele já nasceu pasteurizado. O funk do Silva e o do “Eu só quero é ser feliz” são exemplos isolados, nunca foram a regra do movimento.
Concluindo, falemos de amor, mas falemos com poesia. E falemos também de outros assuntos. Afinal, o universo é mais complexo do que a namoradinha de fim de semana, e se não pensarmos em nossos problemas, eles certamente aumentarão de tamanho. Se não percebermos o quanto tentam nos alienar e manipular, seremos cada vez mais manipuláveis e alienados. Tentemos usar a nossa própria mente para fazer a diferença! Resgatemos a riqueza de nossas diferentes manifestações artísticas e culturais: o povo sofrido e esquecido agradece!