sábado, 12 de fevereiro de 2011

ESCOLAS DE SAMBA, DE VIDA E MORTE SEVERINAS.



Não deixe o samba morrer
Não deixe o samba acabar
O morro foi feito de samba
De Samba, prá gente sambar

(da canção “Não Deixe o Samba Morrer”, de Edson Conceição e Aloísio)

            Infelizmente, o morro há muito tempo já não é mais feito de samba, e o samba não é mais para a gente sambar. Após um intenso processo de “pasteurização cultural”, o samba deixou de ser a manifestação por excelência da cultura afro-brasileira, para se transformar em mero mecanismo de entretenimento para consumo rápido, feito quase sempre para (e muitas vezes por) brancos de classe alta e média alta.
No início da semana, assistimos, pelos noticiários, a um incêndio na Cidade do Samba, na Zona Portuária do Rio de Janeiro, onde ficam os barracões das Escolas de Samba. Nos barracões são confeccionados e armazenados os carros alegóricos e as fantasias que serão usados nos desfiles. Quatro barracões foram atingidos, a menos de um mês do Carnaval, prejudicando irremediavelmente o desfile dessas escolas. Mesmo se houvesse dinheiro suficiente, já não há mais tempo hábil para recuperar os estragos. A LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba, também conhecida como QGJB – Quartel General do Jogo do Bicho) decidiu que não haverá descenso para o segundo grupo.
           Quando de seu nascimento, as Escolas de Samba eram exatamente o que o nome delas sugeria: um local destinado ao aprendizado do samba. Nelas, as pessoas aprendiam a tocar, e principalmente a dançar. Posteriormente, as escolas começaram a organizar desfiles, visando mostrar ao mundo o talento de seus “alunos”. Não demorou muito para surgirem as competições para decidir qual a melhor escola. Inicialmente, cada pessoa que desfilava era responsável por confeccionar sua própria fantasia, mas estas, juntamente com as alegorias, passaram a ser padronizadas, a fim de se adequarem aos enredos. Os enredos seriam temas apresentados pelas Escolas de Samba durante o desfile, e tanto as fantasias e alegorias, quanto a letra do samba, deveriam estar relacionados com ele. Com o tempo, os temas dos enredos foram ficando cada vez mais herméticos, obscuros e ininteligíveis, absolutamente incompreensíveis para o morador dos morros onde se situam as escolas, e até mesmo para o grande público. Esse foi o início da elitização do desfile das Escolas de Samba, hoje totalmente pensado para o turista estrangeiro. Depois disso, muito dinheiro foi entrando, notadamente da contravenção penal, tornando hoje o desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro um grande circo (entendam circo, aqui, em seu pior sentido), chamado por muitos de “o maior espetáculo da Terra”. Bom, quem disse isso certamente nunca viu uma Aurora Austral. Mas mesmo assim, o evento é transmitido para os quatro cantos do mundo, sendo o principal chamariz do turismo no Rio de Janeiro.
            O universo das Escolas de Samba é palco de uma das maiores contradições humanas, deflagrando extremos opostos ocupando o mesmo espaço físico e social. De um lado temos o morador do morro (quase todas as Escolas de Samba do Rio de Janeiro estão localizadas em um morro). Morador de favela, de condição humilde, explorado pelo sistema, trabalha muito por baixíssimos salários, quando não luta contra o desemprego, além de ter de conviver diuturnamente com a violência endêmica do Rio de Janeiro. E ao longo do ano, esse sonhador doa seu sangue e sua alma para a Escola de Samba de sua comunidade, trabalhando arduamente na confecção, armazenamento e transporte das alegorias e fantasias. Tudo isso em nome de seus “quinze minutos de fama” (Andy Warhol dizia que todo ser humano deveria ter direito aos seus, mas no caso do morador do morro isso é quase literal). Por um período que varia entre dez e quinze minutos, o anônimo da favela tem seu momento de rei, quando ele atravessa o “palco iluminado” da Avenida Marquês de Sapucaí, exibindo uma pomposa e colorida fantasia, sendo visto e aplaudido por pessoas de todas as partes do mundo. Não são apenas os presentes no evento que aplaudem, afinal, o desfile é transmitido para o mundo inteiro. Nosso protagonista deixa então, pelo menos por um momento, de ser um Zé-ninguém sem nome e sem rosto, sem quase nenhum passado e absolutamente sem nenhum futuro, para se tornar uma celebridade. Ele se sente como um jogador de futebol, um ator ou cantor famoso, e talvez esse seja o único momento de sua vida em que ele se sinta amado, admirado, valorizado. Sua fantasia geralmente encarna algum personagem ou fato histórico importante, e não faz a menor diferença o fato de muitas vezes ele não fazer idéia de quem ou o que ele está representando. Todas as suas misérias, suas angústias e seus problemas são imediatamente esquecidos, substituídos por uma felicidade analgésica, e sua vida humilde dá lugar a um orgulho para lá de ufanista. Alienação de tudo em nome de alguns minutos de euforia e anestesia. Não parece coisa de usuários de droga? Mas as Escolas de Samba ocupam hoje o terceiro lugar no pódio dos mais eficazes mecanismos de alienação. As micaretas e o Big Brother seguem firmes, ocupando respectivamente o primeiro e o segundo lugar.
            Na qualidade de “Filósofo da Compaixão”, como me venho auto-intitulando, preciso ser compreensivo com essas pessoas. Vítimas de um sistema absolutamente cruel e opressor, sem vez nem voz na sociedade, párias destinados a uma vida de sofrimento, a maioria desses indivíduos sequer tem noção de sua condição de miséria, e muito menos tem noção do quanto esse mecanismo perverso em que as Escolas de Samba se tornaram contribui para a manutenção dessa situação de exploração. Esses curtos quinze minutos de fama são, para muitos deles, o único alento para suas existências. Muitas vezes é a única coisa que dá sentido às suas vidas.
           E do outro lado das contradições, vemos o circo das Escolas de Samba transformado num dos mais sujos e corruptos negócios. O desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (e São Paulo vai pelo mesmíssimo caminho) se presta hoje a três funções básicas. A primeira é servir de “auxiliar operacional” para a chamada “contravenção penal”, notadamente o jogo do bicho e a máfia dos caça-níqueis. Com isso, o concurso das Escolas de Samba perde totalmente a transparência, a honestidade e a lisura, e passa a operar com a mesma lógica da contravenção penal, ou seja: “ganha quem tem mais dinheiro e poder”. Em outras palavras, vence o desfile a Escola de Samba cujo bicheiro “mantenedor” está no momento mandando na LIESA. E isso sem citar o fato de que apoiar as Escolas de Samba não deixa de ser, em última análise, apoiar a contravenção penal com a qual elas mantêm íntima relação.
            A segunda distorção das Escolas de Samba é o fato de servirem de trampolim para semi-famosos, famosos, e quase-ex-famosos entrarem, permanecerem ou voltarem para a mídia. Dois caminhos são possíveis para isso, e muitos tentam os dois. Um deles é desfilar em alguma Escola de Samba (ou em muitas delas), sempre em posição de destaque. Aliás, o “momento celebridade” de nosso anônimo morador do morro é sempre em posições subalternas. Os lugares de destaque estão sempre reservados para as celebridades “de verdade”, gente geralmente rica, famosa, geralmente branca, que exibe padrões europeus de beleza. E quase sempre são pessoas sem a menor ligação com o samba. O outro caminho dos famosos é freqüentar os camarotes mais badalados da Marquês de Sapucaí, e conceder muitas entrevistas para os canais de TV, de preferência vestindo roupas que deixam à mostra partes estratégicas de seus corpos. E nosso amigo anônimo não pode chegar nem perto desses camarotes caríssimos.
            A terceira distorção das Escolas de Samba é a mais cruel e triste de todas. Sob o pretexto de exaltar a beleza da mulher brasileira, o desfile das Escola de Samba se tornou uma espécie de “zoológico de gente” (qualquer semelhança com o Big Brother não é mera coincidência). Trata-se, na verdade, de uma enorme exposição de peitos e bundas para os gringos de todo o mundo se deliciarem, e assim serem atraídos para o Brasil, motivados pela fama de paraíso do turismo sexual de que nosso país goza diante do resto do mundo. Basta ligar a TV durante a transmissão de um baile de Carnaval para podermos confirmar esse dado. E olha que estou falando de uma transmissão de TV, que é editada, censurada, recortada. Imaginem o que não deve ocorrer longe das lentes das câmeras. Num terceiro milênio no qual a mulher vem conquistando cada vez mais respeito e dignidade em quase todo o planeta, esse uso da mulher como objeto de contemplação sexual, e que não ocorre só no Carnaval, já deveria ser considerado inadmissível há muito tempo.
            Tenho pena do morador do morro, que viu seu sonho de um ano inteiro ser destruído pelo fogo em poucos minutos, por razões ainda desconhecidas, e que podem ser criminosas, uma vez que os contraventores se fingem de amigos no âmbito da LIESA, mas vivem se matando por debaixo dos panos, e obviamente os interesses (leia-se dinheiro) são outros. Não contemplam nem de longe a situação do morador da comunidade da Escola de Samba. Por esta vítima do sistema, quero manifestar toda a minha solidariedade. Mas me recuso a dar um suspiro sequer pela máfia que vive do crime, pelos pseudo-artistas que só querem auto-promoção, e principalmente pelos agentes e consumidores do turismo sexual. Aliás, o mundo estaria muito melhor sem eles.