quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

ANO NOVO, VELHOS RITUAIS


          Mais um ano chega ao fim, e se não houver nenhuma hecatombe inesperada, logo no dia seguinte um novo ano se iniciará. Assim como no Natal, as pessoas irão se reunir, trocar votos de felicidade, e desejar um futuro melhor do que foi a vida até aqui. Mas ao contrário do Natal, onde as festas têm características mais familiares, e as pessoas ficam mais compenetradas, alguns chegando inclusive às lágrimas (muitos ficam tristes no Natal), o Ano-novo ganha sempre contornos mais carnavalescos. Aliás, o brasileiro tem a estranha mania de transformar tudo em Carnaval, e o Natal é uma das poucas festas que escapa.
           O Réveillon também é o momento das esperanças no futuro, e para garantir um futuro melhor vale tudo, até mesmo as mais bizarras superstições. Roupas brancas clamam por paz, roupas íntimas ganham a cor que simboliza a principal necessidade de quem a usa (dourado para um ano melhor financeiramente, vermelho para quem busca um novo amor, e assim por diante). Mas o que seria dito de pessoas na beira de uma praia, todos vestidos de branco (menos as cuecas, calcinhas e sutiãs, que inclusive ficam visíveis debaixo das roupas brancas, tornadas quase transparentes pela água, pelo suor e pelas bebidas, pois há quem inclusive tome banho de champanhe ou cerveja), comendo uvas verdes, enquanto dão pequenos saltos sobre as ondas, apoiados em um pé só, coincidentemente, sempre o direito? Em qualquer outra época do ano, a conclusão seria de que se trata de lunáticos, ou de adeptos de alguma religião exótica (o que para muitos é a mesma coisa). Mas no Ano-novo pode. Até os artistas fazem!
           Impressionante a necessidade do ser humano de repetir sempre os mesmos rituais. Parece coisa de homens primitivos, de mentalidades animistas, pré-científicas. Mas mesmo nossa “avançada” mentalidade cartesiana é dada a fazer as coisas sempre do mesmo jeito como foi feito da primeira vez que deu certo. Agimos inconscientemente como se fazer diferente fosse provocar a ira dos deuses, e com isso trazer castigo, desgraça. Quando um rito é praticado por uma única pessoa, ele é considerado patológico, é batizado com o simpático nome de “TOC” (Transtorno Obsessivo-compulsivo, último grito da moda, especialmente depois que Roberto Carlos admitiu sofrer dele), e um tratamento médico e psicológico é sugerido. Mas quando um determinado rito é praticado por todos, ou pela maioria, ele passa a ostentar o status de “tradição”, “cultura”, e não apenas sua prática é incentivada, como não praticá-lo é que passa a ser condenável. “Todo mundo faz isso, por que só você não o faz? Por que você sempre quer ser diferente?” A velha questão da aceitação no grupo social, cujo preço muitas vezes é agir como todo mundo, mesmo que às custas de contrariarmos nossas convicções pessoais.
           Nossos ritos sociais, em geral, não se restringem ao aspecto espacial, mas também possuem uma dimensão temporal. Como já anteriormente citado, comer uvas vestido de branco enquanto se pula sobre um pé só sobre as ondas da praia só é considerado normal na noite de Ano-novo. Em qualquer outra data seria um ato insano, dá até internação. As tradições (rituais socialmente consagrados) têm não apenas lugares e formas, mas também tempos “corretos” para serem praticadas. Além de rituais, o ser humano também é inclinado a criar ciclos, como se a vida fosse uma dança, com seus ritmos peculiares. Nos inclinamos a fazer sempre as mesmas coisas nos mesmos tempos. Tudo bem, meu leitor pode retrucar que toda a natureza opera por ciclos, e todos os seres vivos moldam seus comportamentos conforme esses ciclos. Mas no caso de animais e plantas isso não é uma escolha; eles são geneticamente programados para responder a esses ciclos naturais. O ser humano, por sua vez, mesmo podendo escolher, prefere se manter preso aos seus rituais e ciclos. E mais grave: os rituais e ciclos humanos, em larga medida, já não são mais orientados por aspectos naturais, ou mesmo pelo arcabouço cultural acumulado ao longo da história. Hoje muito de nossos ritos e ciclos têm como mola-mestra o mover da máquina capitalista, e orientam, na verdade, o ritmo de nosso consumo.
           Reparem como ao longo do ano, não há um momento sequer em que a mídia não esteja propagandeando nenhuma data festiva, datas essas que foram transformadas de tradições a meros ensejos para o consumismo. Tudo convenientemente preparado para nos fazer adquirir bens, gastar dinheiro. Começamos o ano sendo estimulados a gastar com o Carnaval, e imediatamente após ele, a mídia já começa a divulgar a Páscoa. Logo depois vêm o Dia das Mães, o Dia dos Namorados, as Festas Juninas, o Dia dos Pais, o Dia das Crianças, o Dia de Finados (até o dia dos mortos vira objeto de consumo, e os floristas agradecem), e por fim, o Natal. E cada uma destas datas tem seu significado original meticulosamente distorcido, para nos fazer gastar dinheiro.
           Desejo que 2011 seja o ano em que começaremos a fazer diferente. Que o encerramento de mais esse ciclo, que inclusive não marca só um novo ano, uma vez que 2011 também inicia uma nova década, nos leve a uma reflexão que nos faça ressignificar nossos velhos rituais e ciclos. Que possamos parar para simplesmente contemplar a beleza de nossas tradições, tradições essas que muitas vezes já não conseguimos mais enxergar, ocupados como estamos, ora consumindo, ora trabalhando para termos mais dinheiro para consumir ainda mais. Que possamos olhar os velhos ritos com novos olhos, e assim iniciarmos uma ação verdadeiramente transformadora em nossas vidas. Mas principalmente que possamos olhar nos olhos uns dos outros e dizer de coração: FELIZ ANO-NOVO!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Jesus x Noel ou O Verdadeiro Sentido do Natal



E então é natal (e a guerra terminou...)
Para o fraco e para o forte (...se você quiser)
Para o rico e para o pobre
O mundo é tão errado
(Tradução de trecho da canção “Happy Xmas, War is Over” – Feliz Natal, a Guerra Acabou, de John Lennon)

           Papai Noel tem uma origem curiosa. Um jovem chamado Nicolau (São Nicolau, para os católicos e ortodoxos orientais), nasceu no século 3, em uma cidade grega chamada Patras. Quando seus pais morreram, ele doou toda sua fortuna para os pobres, e ingressou na vida religiosa. Diz a lenda que, na cidade de Nicolau, viviam três irmãs que não podiam se casar, em virtude de serem muito pobres, e não terem como pagar o dote à família do noivo. O pai delas decidiu então vendê-las como escravas, conforme elas fossem atingindo a idade adulta. Quando a primeira filha estava para ser vendida, Nicolau, ainda jovem, soube do fato, e jogou um saco cheio de moedas de ouro pela chaminé da casa, que caiu dentro de uma meia colocada ali para secar. O mesmo ocorreu com a segunda e a terceira filha, e assim todas puderam se casar. Apenas após a terceira filha ter recebido o “presente”, o pai soube quem era o misterioso benfeitor, e passou a pregar sobre sua bondade. Como Nicolau se transformou depois na figura psicodélica de um velho de longas barbas brancas, vestindo um pijama e um gorro vermelhos, morando no Pólo Norte, e guiando um trenó voador puxado por renas, não faço idéia.
Todo Natal é a mesma coisa. A cada esquina um trabalhador desempregado faz bico vestido de Papai Noel, símbolo-mor do consumismo exacerbado tão em voga em nossa sociedade, lembrando-nos de nosso compromisso de comprar, de adquirir bens de consumo sempre e cada vez mais. A mídia nos assola com intensa propaganda, sempre com as palavras de ordem do consumismo. Uma grande loja de departamentos, inclusive, há vários anos vem poluindo nossos ouvidos com a mesma musiquinha irritante. Os Shopping Centers ficam abarrotados de pessoas, surgem placas e cartazes anunciando promoções por todos os lados, e gente, mas muita gente mesmo, comprando e comprando e comprando e comprando. Os produtos da moda disputados à tapa, filas intermináveis para ir ao caixa, e dívidas ainda mais intermináveis por conta das prestações assumidas por se comprar tantas coisas.
 Papai Noel e o Natal se tornaram talvez os maiores ícones do capitalismo. Tanto é que muitos pensam que a cor da roupa do Papai Noel foi escolhida por ser a mesma da logomarca de uma grande multinacional produtora de refrigerantes. Irônico: um jovem que, ao ficar órfão, doou todo seu dinheiro aos pobres, ingressou na vida monástica, e ficou famoso por doar moedas de ouro para moças pobres poderem se casar, se torna o grande símbolo do consumismo desenfreado, do capitalismo selvagem.
            Todo Natal é a mesma coisa. Pessoas se reencontram, trocam presentes e perdões, fazem votos para um Ano-novo que, invariavelmente, imaginam e desejam será melhor do que o ano em curso. E fazem isso com a família, no trabalho, na escola, no clube, enfim, em todos os lugares que freqüentam. Alguns choram, ficam tristes, depressivos, e quase nunca são capazes de dizer o motivo. Comemos aquelas frutas secas importadas do hemisfério norte, altamente gordurosas, a despeito de estarmos em pleno calor de um verão tropical. À meia-noite, abraços e votos de felicidade são distribuídos, ao som de uma imensa orquestra de fogos de artifício. O Natal parece ter poderes mágicos, uma estranha aura, capaz de transformar nossos individualismos, e convertê-los aos mais sublimes altruísmos. Parece ter o poder de nos fazer parar de olhar apenas para nossos próprios umbigos, para voltarmos nossas atenções para nossos semelhantes menos favorecidos. As pessoas fazem e participam de campanhas, fazem doações e mutirões. Alimentos, roupas e presentes são distribuídos em orfanatos, asilos, hospitais, e até nas ruas, para os párias excluídos de nossa máquina social. Por que só no Natal? 




Mas alguém ainda se lembra do que realmente é o Natal? Historicamente, a Igreja Cristã determinou o dia 25 de dezembro como sendo a data de nascimento de Jesus Cristo. Não pretendo aqui entrar no mérito de que muito provavelmente Jesus não nasceu nesse dia; trata-se na verdade da data de nascimento do deus Mitra, divindade muito popular nos tempos de Jesus, cuja vida apresenta uma série de paralelos com a vida de Jesus, e cujo culto apresenta muitas similaridades com o Cristianismo que surgiria logo depois. Para todos os efeitos, consideremos o dia 25 de dezembro como a data simbólica do nascimento de Cristo.
Quase ninguém mais se lembra disso. Para muita gente, o Natal só continua associado ao nascimento de Jesus na hora de montar o presépio, e nem todos montam presépios, especialmente os protestantes, avessos a toda e qualquer forma de arte sacra, à exceção da musica. Magnífica invenção de São Francisco de Assis, o presépio é o resto, a sobra atávica do verdadeiro sentido do Natal. Jesus Cristo, expressão máxima do Amor de Deus para com a humanidade, acaba de nascer. O menino Jesus é o grande símbolo da esperança, do renascimento. Naquele recém-nascido, deitado em uma manjedoura, na companhia de seus pais, dos magos, de alguns animais, pastores e anjos, o milagre é atualizado: Deus está se fazendo homem, para anunciar à humanidade que Ele mesmo, Deus, está propondo sua reconciliação com a raça humana, está anunciando o fim de todo sofrimento, isso que a Igreja chama hoje de “salvação”.
 O sentimento de perdão que fica na moda nos tempos natalinos é fruto do perdão de Deus, anunciado no nascimento de Cristo. Mas Jesus não estabelece tempos, datas ou prazos para o perdão. Segundo o Mestre, não deve haver sequer limites quantitativos para o perdão: ele deve ocorrer sempre que houver a ofensa. Naquele tempo, Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” Jesus Respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (MT 18: 21-22). Isso não significa que devemos perdoar apenas 490 vezes. Jesus apenas parte do uso do número sete feito por Pedro (sete era o número da perfeição, de um ciclo completo, na concepção judaica), para dar um número grande o suficiente para que se perca a conta no meio do caminho. O perdão deve ser infinito. Até porque talvez a ofensa também o seja.
Infelizmente, nem mesmo a figura de Jesus de Nazaré escapou do processo de “papainoelização”, que também vitimou nosso querido São Nicolau. Os movimentos cristãos pentecostais e carismáticos iniciados no século XX, cujas origens remontam às teologias do Destino Manifesto e da Prosperidade, que abençoaram e sacralizaram a fortuna, o acúmulo de capital, alteraram radicalmente a imagem de Cristo. Jesus deixa de ser a expressão máxima do amor de Deus, que se fez homem para proclamar o perdão, para se transformar em uma espécie de “Papai Noel”, ou então numa modalidade qualquer de “gênio da lâmpada”, sempre alerta para satisfazer nossos caprichos mais mesquinhos, sempre disposto a nos suprir de toda sorte de bens materiais, a nos trazer riquezas, especialmente as mais supérfluas. Talvez aí esteja a explicação para esse ar de magia que toma conta de todos no Natal: tomados pelo remorso de sempre buscarmos nossas fortunas pessoais sem nos preocuparmos com o sofrimento de nosso próximo, uma vez por ano, pelo menos, nós conseguimos nos despir de nossos egoísmos, em nome do bem-estar de nosso semelhante. E o que provoca essa transformação tão radical? Para mim, esse é o grande milagre do Natal: a simples contemplação do Menino Jesus, o mero olhar para a doçura daqueles olhinhos infantis nos faz sentir o perdão de Deus, e nos enche de esperança. Assim, passamos a ver o mundo com outros olhos, os mesmos olhos com os quais Deus nos vê. Já afirmei em outra ocasião que o mundo ocidental seria outro se, ao invés das cruzes, os altares de nossas igrejas tivessem manjedouras. Mesmo a morte de Jesus, tão usada pelas igrejas para tentar nos converter à fé pela culpa por Ele ter sofrido em nosso lugar, não seria nada além de um simples martírio, não teria sentido algum, se depois não houvesse a ressurreição. E a ressurreição de Cristo, que prenuncia a ressurreição de todos nós para uma nova vida, é um novo nascimento. A ressurreição é um novo Natal!
Precisamos parar para refletir sobre essa questão tão importante. Jesus jamais esperou datas especiais, muito menos as ocasiões festivas, para fazer o bem, para anunciar o Reino de Deus. Jesus curava, consolava e ensinava sempre que se via diante de alguém que carecia de cura, de consolo ou de ensino, não importando qual fosse o momento. Inclusive durante as famosas “Bodas de Caná”, narradas no Evangelho de João (quando Jesus transforma água em vinho), o Mestre não hesita em atender ao pedido de um necessitado, mesmo sabendo que “ainda não havia chegado a sua hora”. E Jesus nos manda o tempo todo amarmos uns aos outros como Ele nos amou. Essa disposição de ânimo altruísta que toma conta de nós na época do Natal deve nos acompanhar durante todos os dias de nossas vidas. O tempo de fazer o bem é o tempo presente. A hora de socorrermos nosso próximo é agora. E o nosso próximo é qualquer pessoa que esteja ao alcance de nossas mãos amigas. No Natal, nós devemos celebrar a esperança, o amor e o perdão que deveríamos exercer ao longo de todo o ano. A única diferença é que no Natal ninguém vai estranhar se fizermos isso fantasiados de Papai Noel.
 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

OLHAR PARA ALÉM DO ESPELHO


Quando eu olho o meu olho além do espelho
Tem alguém que me olha e não sou eu

(da canção "Além do Espelho", de João Nogueira e Paulo César Pinheiro)


Falar de nós mesmos no fundo não é nada além de dissecar os rótulos colados sobre nós ao longo de nossas vidas. Após retirarmos todos os rótulos um a um, nós os colocamos em prateleiras intelectuais, catalogando-os segundo critérios bem definidos socialmente. Sobra então apenas uma essência, mas essa nos é absolutamente intangível, e talvez constitua nossa verdadeira Alma, não sei ao certo. Não percebemos, ao fim das contas, que nossa totalidade é maior do que a soma de nossas partes. Somos algo além da mera adição das características adquiridas ao longo da existência.
Na maioria das vezes, nos tornamos tão identificados com o personagem criado a partir da sobreposição de nossos rótulos, que chegamos a confundir esse personagem com nossa essência, como se eles fossem ontologicamente criados junto conosco, e não fossem construídos ao longo de nossa trajetória pessoal. Afirmei isso incontáveis vezes. Mas algumas pessoas ultrapassam essa lógica, e identificam seus personagens com um único rótulo, um único aspecto da vida, ignorando ou mesmo negando todos os outros. São pessoas tão marcadas por seus rótulos, que eles chegam até mesmo a substituir seus nomes – e mesmo nomes não passam de rótulos, não podemos esquecer. Não temos mais o João, a Maria ou o Pedro. Temos em seus lugares o “flamenguista”, o “engenheiro”, o “crente”, ou qualquer coisa parecida. E acabamos por não perceber que cada João, cada Maria ou cada Pedro pode ser todas as coisas citadas ao mesmo tempo, e muitas outras. Raramente um rótulo exclui o outro.
Sendo assim, onde iremos encontrar o Rodrigo? Estaria ele no filho, no irmão ou no neto? Talvez no psicólogo? Quem sabe então no servidor público? No torcedor do Flamengo? No amante de uma Brahma gelada? No poeta? No tocador de viola caipira? No maçom? No cristão liberal? No roqueiro? No estudante de alemão? No comunista? Para ser sincero, em todos eles e em nenhum deles. Sou totalmente Rodrigo em todos esses aspectos, e em muitos outros – não citados apenas por questão de espaço – e ao mesmo tempo não me reduzo a nenhum deles. Sou na verdade um caleidoscópio, um mosaico de todos os rótulos adquiridos ao longo da vida. E tal como um caleidoscópio, cada movimento meu rearruma as diversas imagens, formando sempre imagens novas, caóticas no mais das vezes, é bem verdade. Mas ainda assim belas. E mesmo os rótulos já abandonados ainda me compõem. Não sou mais bancário, por exemplo, mas o fato de tê-lo sido um dia marcou meu ser de forma indelével, ainda faz parte de mim.
Portanto, ao serem perguntados acerca de mim, de quem eu sou, não respondam de modo a reduzir-me a um de meus muitos aspectos, a um único rótulo, ainda que para vocês ele pareça ser o mais marcante. Sou um conjunto único de fatores, e por ser único sou inominável. Apenas por conveniência, chamem esse conjunto de fatores de “Rodrigo” (pelo menos é isso o que se lê em meus documentos), e ao invés de tentar me dissecar, limitem-se a apontar o caleidoscópio que me dá forma.
Gosto dessa analogia do caleidoscópio porque ele se refaz a cada movimento. A cada giro, o caleidoscópio se transforma em uma pintura nova. Sem se mover, contudo, seria apenas uma imagem, um quadro estático. Poderia até ser belo, mas não teria vida, e estaria fadado a, cedo ou tarde, tornar-se um mero enfado, cobrir-se de poeira.
No final, sou uma soma de infinitos fatores: cada livro lido, cada canção ouvida ou cantada, cada imagem vislumbrada, cada palavra dita ou ouvida, cada poema escrito, cada sorriso aberto, cada lágrima derramada, cada beijo dado ou negado, cada pessoa conhecida, amada ou odiada, enfim, cada um desses elementos contribui com suas cores para a formação desse quadro complexo chamado EU. Quadro caleidoscópico, puro movimento, formando sempre novas imagens. E a cada dia, a todo momento, um novo pintor da vida acrescenta sua marca pessoal, seus tons e formas, e assim ajuda a compor meu quadro. Sou grato a Deus por todos eles.
            Agradeço a Deus não apenas pelas bênçãos concedidas, mas também por todas as tribulações permitidas. Mesmo o mais obtuso dos sofrimentos pode ser entendido como dádiva, quando ele se apresenta a nós como pedagogo, e nos ensina lições que de outra forma jamais poderíamos aprender. Às vezes, precisamos perder as nossas pernas para aprendermos a caminhar com o espírito. E mesmo o sofrimento é um pintor de quadros, e nos tinge com suas cores. Cores tristes, mas belas. Jamais nos esqueçamos: o cinza também é uma cor. Também tem sua beleza.
No lugar de me lamentar a cada intempérie, prefiro indagar a Deus sobre o propósito Dele em permitir que as coisas aconteçam dessa forma, e tenho a mais absoluta certeza de que mesmo o mais mortal dos sofrimentos contribuirá com a formação dessa obra de arte única de Deus chamada EU. E o mesmo pode ser dito de qualquer pessoa.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O RESPEITO ÀS DIFERENÇAS


Já não há mais culpado, nem inocente
Cada pessoa ou coisa é diferente
Já que é assim baseado em quê você pune quem não é você?
(da canção “Novo Aeon", de Raul Seixas, Claudio Roberto e Marcelo Motta)

“Quando você for elogiar a magnífica onça-pintada que o patrão caçou, muito cuidado: vai ver que o que ele acha o máximo da habilidade é caçar gambá” (Millôr Fernandes)


Dias atrás, estava eu na mesa do bar de um amigo, conversando com um grupo de pessoas. Comentávamos o recém acontecido casamento de um primo meu, do qual fui padrinho. Meu primo, (além de primo um de meus melhores amigos) sempre foi uma pessoa extremamente extrovertida, e isso muitas vezes fazia as pessoas não o levarem a sério. Muitos o achavam irresponsável, e apostavam que ele jamais seria alguém na vida. Mas em seu casamento, ele resolveu provar ao mundo que era alguém, brindando-nos com uma festa altamente extravagante. Na cerimônia, presença de quatro padres, e um festival de piadinhas, quase todas partindo do próprio noivo, como a simulação de uma crise de tosse na hora de dizer “SIM”.  Até mesmo os padres contaram suas anedotas. Tudo muito descontraído, as pessoas riram o tempo todo. E era uma cerimônia católica de casamento. Alguns, inclusive, consideraram desrespeitoso. A chegada dos noivos no salão de festas foi saudada pelos padrinhos (mais de vinte casais) portando velas acesas, formando um cortejo, enquanto o noivo explodia um tubo que arremessou um bocado de papel celofane picado para o ar. Tivemos ainda queima de fogos, música ao vivo (da qual os convidados que eram músicos puderam participar), e quase 500 litros de chopp, servidos em canecas de acrílico estampadas com a caricatura dos noivos, que os convidados levaram para casa, como recordação. Tudo isso, somados aos mais de dez anos de namoro do casal, tornou o evento o acontecimento do ano no bairro.
            Na mesa do bar, alguns diziam ter sido o evento um gasto de dinheiro inútil (e não foi pouco, diga-se de passagem). Haveriam maneiras mais inteligentes e úteis de gastar esse dinheiro, diziam. No fim, todos pareciam concordar que não apenas esta, mas toda e qualquer festa de casamento seria um gasto inútil de dinheiro. Até mesmo eu concordo com isso em larga medida, mas não demorou muito para uma das mulheres à mesa reclamar: “mas toda mulher sonha em casar de véu e grinalda”.  Por que razão as mulheres costumam dar tanto valor a coisas sem nenhum sentido prático? Flores, festas de casamento, poemas declamados, caixas de bombons, o mero reparar na mudança de um penteado, são todos fetiches altamente valorizados pelas mulheres, e tremendamente desprezados pelos homens. Nós, homens, só nos preocupamos com isso quando essas coisas se tornam “ferramentas”, quando nos ajudam a conquistar e/ou agradar as mulheres.
            Sempre existem exceções, mas em geral os homens valorizam as coisas pelo seu aspecto prático, racional, enquanto as mulheres se orientam por uma escala de valores afetivos. Já repararam como são freqüentes as situações em que um grupo simplesmente não consegue entender as motivações do outro, e quantas desavenças surgem exatamente dessa falta de compreensão? Isso só reafirma uma situação óbvia: homens e mulheres são diferentes, têm suas peculiaridades. Assim também as crianças, os idosos, enfim, cada indivíduo desse mundo tem suas particularidades, cada ente desse planeta (e de qualquer outro, até onde sei) é um ser único, inimitável, que jamais vai se repetir. E estas singularidades devem ser, antes de tudo, respeitadas, mesmo se nos parecerem estranhas, de mau gosto, loucas, ou até mesmo ridículas.
            Em geral, a sociedade elege um conjunto específico de características, gostos e hábitos como sendo o padrão, como “o correto”, “o jeito saudável de ser”, como aquilo que define as “pessoas legais” (aquelas que você nunca pode deixar de convidar para sua festa, especialmente se você quiser a presença de alguns paparazzi). O mercado de trabalho faz a mesma coisa ao criar o estereótipo do “bom profissional”. Todo mundo então passa a viver tentando se moldar a esses estereótipos, numa busca neurótica por aceitação social, por sucesso na vida, por um lugar em seu grupo social. Assim, nós queremos sempre nos vestir com as cores da moda, ouvir as canções da moda, assistir aos filmes da moda, comer os venenos com gergelim da moda, enfim, queremos fazer tudo o que fazem as pessoas que estão na moda. “Eu tenho que fazer isso porque as pessoas legais fazem isso, e eu também quero ser visto como uma pessoa legal”. Essa voz de comando povoa o inconsciente de quase todos nós. Apenas não costumamos nos dar conta disso, não temos consciência de sermos assim. Mas é uma voz praticamente onipresente, o tempo todo guiando nossas ações.
Os meios de comunicação exercem um papel crucial nesse processo, vendendo ao público imagens, sonhos, metas e desejos, quase sempre ilusórios, inatingíveis. A mídia fabrica incessantemente esses estereótipos, invadindo todos os dias nossa privacidade, e sussurrando em nossos ouvidos palavras sobre como devemos ser, como devemos nos comportar, do que devemos gostar e não gostar. Esse processo de massificação é mais profundo entre os jovens e adolescentes, por esses estarem ainda formando suas personalidades, e por serem os grupos etários mais suscetíveis às questões de aceitação por parte de seus grupos sociais. Permitam-me dar um exemplo ilustrativo: uma determinada atriz de TV aparece num programa de auditório dominical usando um corte de cabelo ou uma roupa nova, e dias depois todas as mulheres a estão imitando, inconscientemente esperando que isso as torne tão glamorosas como a atriz. Não tem a menor importância se uma semana atrás aquele corte de cabelo ou aquela roupa fossem considerados de péssimo gosto; agora eles se tornam o último grito da moda. Se a atriz estiver protagonizando algum personagem importante de novela nesse momento, a coisa será ainda mais gritante. E afinal, o que mudou? Mudou o gosto das pessoas? Não, mudou tão somente o fato de alguém famoso, formador de opinião, dizer que é legal.
Mas o que acontece com as pessoas que são se adéquam a esses padrões sociais? Esses só são convidados para as festas por uma questão de obrigação, de boas maneiras. Em geral eles são postos de lado, censurados por seu jeito de ser, e frequentemente admoestados o tempo todo a mudarem de atitude, a se moldarem conforme os padrões, a serem como todo mundo. “Desse jeito, ninguém vai gostar de você!”, ouvimos esse conselho desde a nossa infância. Esses indivíduos ganham a alcunha de esquisitos, excêntricos, ou até de loucos. E qual a solução para essas pessoas? Muitos acabam se juntando a outros indivíduos cujos gostos são parecidos com os seus, e assim formam guetos, chamados hoje de “tribos” pelo jargão politicamente correto. Outros acabam vivendo suas alteridades de forma tão intensa e violenta, que acabam por enlouquecer mesmo, literalmente, e no fim são “tratados”, para voltarem a ser como todo mundo. O que são as mais variadas terapias psiquiátricas e psicológicas senão um processo de formatação, de adequar o indivíduo aos padrões socialmente aceitos? Por fim, alguns desistem de serem eles mesmos, para vestir a camisa dos “socialmente corretos”. O preço disso é a eterna tensão de viver um personagem com o qual não se está identificado. Essa tensão está na base de uma série de neuroses, mas uma vez que elas são oriundas do modo de vida consagrado pela sociedade, imposto a um sujeito que não se adapta a viver desse jeito, essas disfunções passam a ser entendidas por todos como coisas normais, meros efeitos colaterais da pós-modernidade. Acabam então sendo atribuídas a fatores outros como “o stress do dia-a-dia”, ou coisas do gênero, o que até confere ao indivíduo uma certa aura de heroísmo, por ele ser visto como uma vítima das conseqüências do estilo de vida moderno. E essa vitimização no fim compensa o preço pago. “Eu vou pagar a conta do analista, para nunca mais ter que saber quem eu sou”, dizia Cazuza. Quantos não preferem pagar o preço?
E o que torna tão difícil para as pessoas “normais” aceitarem e conviverem bem com quem é “diferente”? A resposta é simples: adequar-se aos padrões socialmente consagrados confere ao indivíduo um sentimento de aceitação, dá a ele uma imagem de pessoa querida, de que todas as pessoas o amarão, e irão querê-lo por perto. Garante o sentimento de pertencimento ao seu grupo. Nossa sociedade vende essa idéia como o ideal de felicidade; o indivíduo é violentamente convencido de que ser feliz é pensar como todo mundo, freqüentar os lugares que todos freqüentam, dançar e cantar as mesmas músicas, beber a mesma bebida, vestir o mesmo tipo de roupa. Resumindo: ser feliz é ser aceito. E para ser aceito por todos, é preciso ser como todos são. Afinal, esse é o raciocínio lógico: se essa é a opção da maioria, deve ser a melhor opção. Ninguém percebe que esses padrões são socialmente construídos, tendo muitas vezes como motivação o consumo, vender novos estilos de vida, e com isso novos produtos, mover a mola do capitalismo, criando demandas, produzindo desejos. Um novo estilo musical, por exemplo, se torna febre porque a mídia nos convence disso, independente da qualidade desse estilo musical.
As pessoas se agarram com unhas e dentes a essa idéia, e esta passa a dar sentido a suas vidas. Elas se convencem de que só serão felizes se forem aceitas pela sociedade, e só serão aceitas caso se comportem da forma como a sociedade determina. Só assim é possível ser feliz, não há uma alternativa, um “plano B”. O que fazer, então, quando estamos diante de alguém que simplesmente não segue nossas regras, mas ao mesmo tempo mostra-se muito feliz, em muitas ocasiões parece até mais feliz do que nós? Eis aqui a raiz do problema: a alteridade, a diversidade, o fato de alguém conseguir viver guiado por valores diferentes dos nossos, e ainda assim viver feliz, nos força a relativizarmos nossos próprios valores, nosso próprio conceito de felicidade. Faz-nos ter de admitir que essa afirmação de que a felicidade só é possível para quem vive como nós é simplesmente falsa. E como muitas pessoas preferem simplesmente não ver os seus problemas a encará-los, muitos preferem discriminar, deixar de lado a alteridade, não precisar conviver com ela, tirar a diferença do campo visual, tentar fingir que as diferenças não existem. Para não ter de admitir que minha receita de felicidade não é a única, e talvez nem seja a mais eficaz, eu acabo extirpando de meu convívio quem possui outras receitas. Muitos pensam assim. E pior, agem assim.
Claro que toda moeda possui duas faces. Não estou aqui fazendo uma apologia à subversão ou à diferença. Muito menos quero obrigar quem se adéqua bem aos padrões da sociedade a mudar, a tornar-se diferente. Cada um tem o direito de ser como quiser, de viver como bem entender. Assim como seguir as normas sociais não garante a ninguém a felicidade, ser diferente também não o faz. Muita gente se esconde em guetos, assume alteridades, apenas porque não consegue tanta aceitação quanto deseja fora desses guetos. Sem conseguir sucesso entre os “normais”, muitos deles se fingem de “diferentes”, para serem aceitos pelos “diferentes”. Isso é o mesmo que viver tentando se adequar aos valores socialmente consagrados, e produz neuroses do mesmo jeito. Não há nenhum valor real em se abandonar uma posição extremista em favor de outra tão radical quanto.
Meu apelo é apenas para que olhemos para quem é diferente exatamente como ele é, e não mais do que isso: como alguém diferente. Mas como alguém. Ser humano como nós, digno como nós, com direitos e deveres como nós. Tentar moldar as pessoas aos nossos padrões é violência psicológica, uma das piores formas de violência que podemos ter para com nosso semelhante (ou nosso “dessemelhante”), Não aceitar suas diferenças é discriminação. Tentar extirpar a diferença de nossa vida é ilusão. E ser feliz é ser como se é, e não como querem que sejamos. Não importa quem queira isso.