sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

OLHAR PARA ALÉM DO ESPELHO


Quando eu olho o meu olho além do espelho
Tem alguém que me olha e não sou eu

(da canção "Além do Espelho", de João Nogueira e Paulo César Pinheiro)


Falar de nós mesmos no fundo não é nada além de dissecar os rótulos colados sobre nós ao longo de nossas vidas. Após retirarmos todos os rótulos um a um, nós os colocamos em prateleiras intelectuais, catalogando-os segundo critérios bem definidos socialmente. Sobra então apenas uma essência, mas essa nos é absolutamente intangível, e talvez constitua nossa verdadeira Alma, não sei ao certo. Não percebemos, ao fim das contas, que nossa totalidade é maior do que a soma de nossas partes. Somos algo além da mera adição das características adquiridas ao longo da existência.
Na maioria das vezes, nos tornamos tão identificados com o personagem criado a partir da sobreposição de nossos rótulos, que chegamos a confundir esse personagem com nossa essência, como se eles fossem ontologicamente criados junto conosco, e não fossem construídos ao longo de nossa trajetória pessoal. Afirmei isso incontáveis vezes. Mas algumas pessoas ultrapassam essa lógica, e identificam seus personagens com um único rótulo, um único aspecto da vida, ignorando ou mesmo negando todos os outros. São pessoas tão marcadas por seus rótulos, que eles chegam até mesmo a substituir seus nomes – e mesmo nomes não passam de rótulos, não podemos esquecer. Não temos mais o João, a Maria ou o Pedro. Temos em seus lugares o “flamenguista”, o “engenheiro”, o “crente”, ou qualquer coisa parecida. E acabamos por não perceber que cada João, cada Maria ou cada Pedro pode ser todas as coisas citadas ao mesmo tempo, e muitas outras. Raramente um rótulo exclui o outro.
Sendo assim, onde iremos encontrar o Rodrigo? Estaria ele no filho, no irmão ou no neto? Talvez no psicólogo? Quem sabe então no servidor público? No torcedor do Flamengo? No amante de uma Brahma gelada? No poeta? No tocador de viola caipira? No maçom? No cristão liberal? No roqueiro? No estudante de alemão? No comunista? Para ser sincero, em todos eles e em nenhum deles. Sou totalmente Rodrigo em todos esses aspectos, e em muitos outros – não citados apenas por questão de espaço – e ao mesmo tempo não me reduzo a nenhum deles. Sou na verdade um caleidoscópio, um mosaico de todos os rótulos adquiridos ao longo da vida. E tal como um caleidoscópio, cada movimento meu rearruma as diversas imagens, formando sempre imagens novas, caóticas no mais das vezes, é bem verdade. Mas ainda assim belas. E mesmo os rótulos já abandonados ainda me compõem. Não sou mais bancário, por exemplo, mas o fato de tê-lo sido um dia marcou meu ser de forma indelével, ainda faz parte de mim.
Portanto, ao serem perguntados acerca de mim, de quem eu sou, não respondam de modo a reduzir-me a um de meus muitos aspectos, a um único rótulo, ainda que para vocês ele pareça ser o mais marcante. Sou um conjunto único de fatores, e por ser único sou inominável. Apenas por conveniência, chamem esse conjunto de fatores de “Rodrigo” (pelo menos é isso o que se lê em meus documentos), e ao invés de tentar me dissecar, limitem-se a apontar o caleidoscópio que me dá forma.
Gosto dessa analogia do caleidoscópio porque ele se refaz a cada movimento. A cada giro, o caleidoscópio se transforma em uma pintura nova. Sem se mover, contudo, seria apenas uma imagem, um quadro estático. Poderia até ser belo, mas não teria vida, e estaria fadado a, cedo ou tarde, tornar-se um mero enfado, cobrir-se de poeira.
No final, sou uma soma de infinitos fatores: cada livro lido, cada canção ouvida ou cantada, cada imagem vislumbrada, cada palavra dita ou ouvida, cada poema escrito, cada sorriso aberto, cada lágrima derramada, cada beijo dado ou negado, cada pessoa conhecida, amada ou odiada, enfim, cada um desses elementos contribui com suas cores para a formação desse quadro complexo chamado EU. Quadro caleidoscópico, puro movimento, formando sempre novas imagens. E a cada dia, a todo momento, um novo pintor da vida acrescenta sua marca pessoal, seus tons e formas, e assim ajuda a compor meu quadro. Sou grato a Deus por todos eles.
            Agradeço a Deus não apenas pelas bênçãos concedidas, mas também por todas as tribulações permitidas. Mesmo o mais obtuso dos sofrimentos pode ser entendido como dádiva, quando ele se apresenta a nós como pedagogo, e nos ensina lições que de outra forma jamais poderíamos aprender. Às vezes, precisamos perder as nossas pernas para aprendermos a caminhar com o espírito. E mesmo o sofrimento é um pintor de quadros, e nos tinge com suas cores. Cores tristes, mas belas. Jamais nos esqueçamos: o cinza também é uma cor. Também tem sua beleza.
No lugar de me lamentar a cada intempérie, prefiro indagar a Deus sobre o propósito Dele em permitir que as coisas aconteçam dessa forma, e tenho a mais absoluta certeza de que mesmo o mais mortal dos sofrimentos contribuirá com a formação dessa obra de arte única de Deus chamada EU. E o mesmo pode ser dito de qualquer pessoa.