sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

JUSTIÇA FEITA. O QUE SEMPRE FOI LEGITIMO AGORA TAMBEM E LEGAL.


"Uma vez Flamengo, sempre Flamengo"
"E o meu maior prazer vê-lo brilhar"
"Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer"
"Eu teria um desgosto profundo, se faltasse o Flamengo no mundo!"
(Trechos do Hino Oficial do Flamengo)


            Na última semana, teve um provável fim a maior polêmica da história do futebol brasileiro. Depois de 24 anos, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol, órgão máximo do futebol em nosso país) finalmente reconheceu o Clube de Regatas do Flamengo como Campeão Brasileiro de 1987. Não quero ainda entrar no mérito dos aspectos históricos dessa polêmica, nem no fato da motivação da CBF para esse gesto ter sido meramente política (ninguém em sã consciência vai achar que a CBF “viu a luz”, se converteu e resolveu fazer justiça). Quero me ater por enquanto apenas ao fato de que essa discussão, apesar de aparentemente só envolver o futebol e todo o circo criado em torno dele, na verdade nos remete a um reflexão filosófica muito maior, que é aquela da diferença entre a LEGALIDADE e a LEGITIMIDADE. Essas palavras parecem significar a mesma coisa, mas os aspetos sutis de cada uma delas revelam uma diferença semântica abismal. Quando as pessoas ou a imprensa discutiam se o Flamengo era hexa ou penta-campeão brasileiro, sem saber, estavam argumentando de maneira a questionar não a legalidade do título, mas sim sua legitimidade. Para quase todos os que negavam a legitimidade do hexa rubro-negro, o argumento era simples: só vale o que é legal. Quem estabelece a legalidade no futebol brasileiro é a CBF. E se a CBF não reconhecia a legalidade do título de 1987, então o Flamengo não seria o campeão. Os defensores do hexa, por seu turno, questionavam a lisura do processo que levou ao não reconhecimento do título rubro-negro, uma vez que o cruzamento entre os clubes dos dois módulos não estava previsto no regulamento da competição, sendo proposto já com ela em andamento. O Flamengo então, estaria sendo “punido” por ter cumprido a lei, e por ter se negado a ser conivente com um golpe. Assim, por mais que a situação do Flamengo fosse “legal”, no sentido da lei não o reconhecer como campeão, a lei em si não possuiria legitimidade, por se calcar sobre uma manobra ilegítima. E assim o Flamengo seria o legítimo campeão.
            Inicialmente, pensemos no aspecto comum entre os dois conceitos. Ambos estão embasados em um mesmo alicerce filosófico: a autoridade. Mas já aqui surge uma grande diferença entre a legalidade e a legitimidade. Elas não têm necessariamente o mesmo referencial de autoridade. A legalidade, por exemplo, faz referência àquilo que é “legal”, ou seja, àquilo que está em conformidade com a lei. Mas como alguma coisa é elevada ao status de lei? Quem, afinal de contas, decide o que será e o que não será lei? Segundo Foucault, nossa sociedade opera a partir de mecanismos de poder, vigilância, controle e punição. Esses são os fatores reguladores do comportamento humano em nossas sociedades “civilizadas”. A justificativa é clara, e aparentemente justa: sem esses mecanismos, viveríamos uma espécie de barbárie, e retornaríamos a um modus vivendi semelhante ao do mundo selvagem, regido pela Lei da Seleção Natural, descrita por Darwin, na qual a competição entre os indivíduos garantiria a sobrevivência apenas dos mais aptos. Obviamente isso feriria nosso conceito já atávico de dignidade individual da pessoa humana (Nietzsche em nível teórico, e o capitalismo e os políticos em nível prático, rompem com essa lógica, mas isso é assunto para um estudo à parte). Nossa diferença em relação aos seres selvagens seria exatamente o fato de postularmos regras de comportamento, que nos protegem a cada um, individual e coletivamente, e às quais todos devemos nos submeter. Essas regras estabelecem direitos e deveres para cada indivíduo, e se todos cumprirem à risca as regras, a sociedade como um todo funcionará a contento. Aqui entram os mecanismos foucaultianos. Os de vigilância e controle para todos os indivíduos, e os de punição apenas para aqueles que não cumprem as regras legais socialmente estabelecidas.
            Mas como a legalidade é determinada? Ela é elaborada e mantida por aqueles que exercem o poder, e aqui começa o problema: nem sempre os indivíduos que exercem o poder o fazem com a aprovação de todos, visando os interesses e o bem comuns. O poder pode ser exercido de duas maneiras. Uma delas seria a partir de um consenso da maioria (todos reconhecem a autoridade de quem está no poder, como no caso de nossas eleições). Mas muitas vezes quem exerce o poder o faz por meio da simples força; a história do mundo está repleta de ditaduras e outros sistemas opressores, sendo muitas vezes odiados por uma maioria obrigada a se manter silenciosa, sob pena de sofrerem severas punições. Mas mesmo assim esses indivíduos exercem o poder. Seus decretos são tecnicamente “legais”, ou seja, possuem o status de lei, por mais injustos, vis e cruéis que possam vir a ser. A execução de judeus e outros grupos étnicos na Alemanha dos tempos da Segunda Guerra Mundial, levada a cabo por Hitler, era “legal”, ou seja, estava na lei. Mas podemos considerar essas atrocidades como legítimas?
           Em uma sociedade ideal, tudo o que é legal é legítimo, e vice-versa. Mas o mundo real é bastante diferente. A legitimidade se baseia em outro princípio de autoridade, que é o também atávico conceito de justiça. Segundo Kant, o ser humano possui uma espécie de conhecimento inato do certo e do errado, e para ele esse é o único argumento filosófico válido para demonstrar a existência de Deus. Para Kant, o homem não seria capaz, por si só, de elaborar esses conceitos. E mesmo o mais injusto dos homens tem consciência deles. Por mais perverso que possa ser, ele percebe estar agindo de forma “errada”, quando assim o faz. A ideia de Kant não era de que a justiça fosse algo inerente ao homem, mas sim o conhecimento do que é justo. No contexto cristão, essa lógica se revela na teologia do Pecado Original, que teria feito com que o homem deixasse de ter condições de agir com justiça, mesmo sem perder o conhecimento do que era e do que não era justo, e só a salvação de Cristo poderia libertar o homem dessa situação. Mas mesmo se não formos cristãos, ou se o formos, mas não aceitarmos a ideia do pecado original (como é o meu caso), não podemos negar: mesmo o mais torpe dos homens conhece os conceitos de amor, bondade, justiça etc. Essa então seria a base do conceito de legitimidade. Uma coisa é tão mais legítima quanto mais ela se aproximar desses valores, independente de estar ou não em conformidade com a lei vigente.
            Em 1987, o Flamengo, juntamente com o Internacional de Porto Alegre, clube vice-campeão da Copa União (que seria o legal e legítimo campeonato brasileiro do ano, uma vez que a CBF se declarou sem condições de organizar o campeonato brasileiro naquela época, repassando essa tarefa aos clubes) se recusou a ser conivente com um golpe, que transformaria a Copa União em apenas um módulo do campeonato brasileiro, sendo o outro módulo formado pelo campeonato organizado pela própria CBF. A CBF só começou a organizar sua própria competição porque percebeu que o contrato firmado pelos clubes que disputavam a Copa União com a emissora de TV que comprou os direitos de transmissão dos jogos era altamente rentável, e assim ela propôs um cruzamento entre o campeão e o vice de cada módulo (e não apenas o campeão, como querem nos fazer acreditar alguns hipócritas que apelavam para a legalidade a fim de negar o título do Flamengo, e agora rejeitam essa mesma legalidade para continuar negando). Essa proposta não tinha a menor legitimidade pela seguinte razão: ela foi apresentada já com a Copa União em andamento, ou seja, TENTARAM MUDAR AS REGRAS DO JOGO DEPOIS DELE JA TER COMEÇADO. O Clube do 13, formado pelos clubes que organizaram a Copa União, se recusou a acatar essa barbaridade, e decidiu que esse cruzamento de equipes não aconteceria. Para o Clube dos 13, o campeão da Copa União seria o legítimo Campeão Brasileiro de 1987. O Flamengo, como membro do clube, HONROU SEU COMPROMISSO, e pagou com isso o preço de não ter seu título reconhecido por mais de duas décadas. A CBF, cheia de legalidade e totalmente vazia de legitimidade, manteve o “golpe de estado” que ela mesma propôs, e decretou o campeão de seu campeonato como o campeão brasileiro, mesmo tendo antes dito que seria o campeão da Copa União. A CBF, que por essas e outras “peripécias” foi ganhando, ao longo dos anos, o status de uma das instituições mais desacreditadas desse país, agora tenta recuperar prestígio, e com isso ganhar força política.
            Tardiamente, mas antes tarde do que nunca, a justiça finalmente foi feita. Não importa com que motivação, a CBF reconheceu o Flamengo como Campeão Brasileiro de 1987, para o amargor daqueles que sabem tudo de legalidade e nada de legitimidade, e mesmo assim só apelam para a legalidade quando lhes convêm. O Flamengo sempre foi o campeão de FATO (legitimidade). E agora ele o é de DIREITO (legalidade).