quarta-feira, 9 de março de 2011

Filhas do Pai, Mães do Filho, e Esposas do Espírito Santo


A Mulher tem na face dois brilhantes
Condutores fiéis do seu destino
Quem não ama o sorriso feminino
Desconhece a poesia de Cervantes
A bravura dos grandes navegantes
Enfrentando a procela em seu furor
Se não fosse a Mulher, mimosa flor
A História seria mentirosa
(da canção “Mulher Nova, Bonita e Carinhosa, Faz o Homem Gemer Sem Sentir Dor”, de Zé Ramalho)

            No último dia 08 de Março, o mundo celebrou o Dia Internacional da Mulher, um pouco ofuscado no Brasil pelo fato desse dia ter sido também a terça-feira de Carnaval. Como sabemos, o Carnaval tornou-se o maior agente de alienação do país, fazendo com que todos esqueçam completamente todas as questões importantes, todos os seus problemas e mazelas, para só pensar na folia. Alguns chegam a afirmar que no nosso país o ano só começa realmente após o Carnaval.
            O Dia Internacional da Mulher tem suas origens na Rússia do início do século XX, quando mulheres trabalhadoras realizaram uma série de manifestações por melhores condições de trabalho, e contra a entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial. Essas manifestações tiveram forte influência na Revolução Russa de 1917, servindo inclusive de propaganda para os governos socialistas do que seria a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). E apenas em 1975, a Organização das Nações Unidas (a ONU) reconheceu oficialmente a data como o Dia Internacional da Mulher.
            Mas qual a razão de ser de termos um dia dedicado a homenagear as mulheres, especialmente se não temos uma ocasião análoga para homenagear os homens? Simples, a razão é a mesma de termos um Dia do Orgulho Gay, um Dia do Trabalhador, um Dia Mundial de Luta Contra a AIDS, um Dia da Consciência Negra, e por aí vai. São todos grupos historicamente oprimidos e marginalizados pelos grupos majoritários (não necessariamente majoritários em termos de quantidade, mas sim por serem os grupos que detêm o poder). Termos datas comemorativas para todos esses grupos historicamente marginalizados e oprimidos é tanto um resgate histórico de suas dignidades e de suas especificidades existenciais, quanto uma forma dos grupos majoritários “pedirem perdão” pelas atrocidades cometidas ao longo da História, além de ser uma forma de reconhecer a importância dos menos favorecidos. No caso das mulheres, já se tornou lugar comum falarmos dos desafios enfrentados por elas em nossa sociedade contemporânea, como menores salários para as mesmas funções no mercado de trabalho, dupla jornada de trabalho, em casa e no emprego, assédios sexuais, empregadores exigindo cirurgias de esterilização para dar emprego às mulheres, entre outras atrocidades. E esse quadro funesto não foi pintado hoje, nem ontem. Ele tem suas raízes profundamente enterradas em nossa História.
            Ao longo das eras, a mulher sempre sofreu na carne as maiores humilhações já imaginadas pelo ser humano. Exemplos históricos não nos faltam: na Grécia antiga, uma mulher poderia ser condenada à morte, caso desse à luz apenas a meninas. O crime seria “não dar soldados para o estado” (não se sabia na época, mas o sexo dos bebês é determinado pelo cromossoma sexual do homem). Na antiga China, as mulheres de classe alta eram obrigadas a usar sapatos minúsculos, a fim de terem seus pés deformados ao ponto de dificultar o mero ato de caminhar. A justificativa: demonstrar que as mulheres viviam em famílias abastadas, nas quais elas não precisariam realizar nenhum tipo de trabalho. Mesmo porque os antigos chineses não consideravam a mulher como tendo qualquer utilidade além de procriar. Em algumas culturas islâmicas mais fundamentalistas, é comum vermos mulheres sendo submetidas a cirurgias de remoção do clitóris, para que elas não sintam nenhum prazer na relação sexual. E até hoje em dia, em tempos em que nos consideramos extremamente avançados e esclarecidos, ainda mantemos alguns resquícios desse passado de opressão. Vejamos o caso dos nomes: enquanto é solteira, uma mulher é chamada de “Senhorita X” (X sendo o sobrenome do pai). Após o casamento, ela se torna a “Senhora Y” (Y sendo o sobrenome do marido). Por trás desse aparentemente inocente costume, esconde-se uma triste e arcaica mentalidade. A mulher não pode ser dona de si mesma, não pode ter liberdade, sendo sempre propriedade de algum homem, seja ele seu pai ou seu marido. Quem é mais jovem pode não ter a menor ideia disso, e pode inclusive ficar chocado, mas no Brasil, há menos de 50 anos atrás, uma mulher casada não poderia sequer viajar sozinha sem uma autorização por escrito de seu marido.
            Até mesmo o Cristianismo foi um grande opressor histórico das mulheres, a despeito do fato de Jesus sempre nutrir o maior respeito por elas. Baseados no relato da criação do mundo do livro bíblico de Gênesis, os homens cristãos argumentaram que a mulher era a culpada pela expulsão do ser humano do paraíso. Sua posição subalterna seria então um justo castigo de Deus por ter desobedecido às ordens divinas, e por ter levado o “inocente” homem a fazer o mesmo. Alguns teólogos chegaram a afirmar que as mulheres não possuíam alma; depois admitiram a existência de uma alma feminina, porém inferior à alma do homem, e muito se discutiu sobre se essa alma feminina poderia ou não entrar no Reino dos Céus. E assim teve início todo o histórico de sofrimentos e humilhações infringidas pelo homem sobre as mulheres na cristandade. Séculos e séculos transcorreram até a igreja reconhecer a igualdade entre homens e mulheres enquanto imagem e semelhança de Deus. Mulheres chegaram a ser mortas, sob acusações de bruxaria, apenas por conhecerem ervas medicinais, por realizarem trabalhos considerados exclusividade masculina, ou por insistir em praticar a religião de seus antepassados. E mesmo no cristianismo atual, onde muito se avançou no sentido de um resgate histórico da dignidade da mulher, ainda a vemos ser relegada a posições secundárias nas comunidades cristãs. Muito se explora a força de trabalho das mulheres em nossas igrejas, mas sempre em posições inferiores. Os cargos “de comando”, nas igrejas da atualidade, continuam tão prerrogativas masculinas, quanto o eram na Idade Média. Pouquíssimas denominações cristãs de hoje, como a Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil e a Igreja Anglicana do Brasil, exemplos raros em nosso país, ordenam mulheres ao sacerdócio.
            Mas e Jesus? Qual era a postura do Mestre perante as mulheres? Jesus se comportou diante das mulheres da mesma forma como ele sempre se comportou diante de todos os párias sociais, de todos os grupos oprimidos e marginalizados de seu tempo. Ele demonstrou compaixão, respeito, admiração, e tentou a todo momento resgatar a dignidade da mulher, num contexto de um judaísmo que já havia há muito adotado uma postura opressora contra elas. Confrontando um Judaísmo cujos Rabinos (os líderes religiosos, os “padres” e “pastores” da época) orientavam os homens a incluir em suas orações a seguinte sentença: “bendito sejas Tu, Senhor, porque Tu não me fizeste mulher”, Jesus frequentemente colocava as mulheres em posições de destaque, tanto em seu ministério quanto em suas pregações e suas curas. Exemplos disso estão por todo lado no texto neotestamentário.
           Apenas para começar, Jesus incluía mulheres entre seus discípulos, provocando a ira das autoridades judaicas. Algumas mulheres, inclusive, por serem provenientes de famílias ricas, patrocinavam financeiramente o ministério do Mestre. Também em relação às leis sociais dos judeus, Jesus desafiou o status quo, sempre em favor das mulheres. Nos tempos de Jesus, era corriqueiro os homens fazerem uso do direito ao divórcio (direito exclusivamente masculino), para abandonarem suas esposas, muitas vezes pelos motivos mais fúteis. Essas mulheres, chamadas de “repudiadas” pela sociedade, até poderiam se casar novamente, mas como eram socialmente execradas, raramente conseguiam novo marido, ficando sem amparo para sobreviver (não havia nada parecido com aposentadorias ou pensões alimentícias naquele tempo). A única saída para não morrer de fome, não raras vezes, era a prostituição. Jesus quebra esse paradigma, dando o direito ao divórcio tanto para homens quanto para mulheres, com a diferença de que o Mestre reitera que o plano ideal de Deus não inclui divórcio, e que ele só deve acontecer em casos extremos, os de adultério.
            Falando em adultério, existia uma lei judaica que ordenava que a mulher flagrada em adultério deveria ser apedrejada até a morte. Cinicamente, nenhuma punição era prevista para os homens. Diante de uma mulher acusada exatamente de adultério, Jesus manda que qualquer um que não tivesse pecado algum atirasse a primeira pedra, que Ele mesmo tinha nas mãos estendidas para os presentes. Esse desafio fez cada um deles consultar suas próprias consciências, e assim ninguém se atreveu a atirar a pedra. Todos se afastaram silenciosamente. Essa passagem traz uma lição importante: o Mestre em momento algum nega o pecado da mulher, e sim chama a atenção para o perdão. Como nenhum de nós é isento de pecados, todos devemos ter compaixão por quem quer que peque, e a compaixão sempre exige o perdão. E após perdoar, Jesus apenas pede para que a mulher não repita seu ato. Mesmo porque da próxima vez Ele poderia não estar mais por perto para defendê-la.
            No episódio da crucificação, enquanto os doze principais discípulos batiam em retirada amedrontados, Pedro chegando mesmo a negar até que conhecia a Jesus, quando interpelado por autoridades romanas, as mulheres permaneciam fiéis aos pés da cruz, acompanhando todo o sofrimento do Mestre. Mais um exemplo da compaixão tão ensinada por Jesus. Do céu, certamente o Pai aplaudiu aquelas heroínas. Após a ressurreição, foi para as mulheres que Jesus apareceu pela primeira vez. E ao relatar o fato aos discípulos, elas ainda foram obrigadas a ouvir, sem reclamar, um Pedro (o mesmo que negou conhecer Jesus) chamá-las de fofoqueiras, tagarelas, e de duvidar da sanidade mental delas. Graças à compaixão que elas, melhor do que ninguém, aprenderam do Mestre, elas não reagiram a esse insulto.
            Mas o maior exemplo de valorização das mulheres está em Maria, mãe biológica de Jesus. Que me perdoem os meus irmãos católicos, mas para mim, Maria não possuía em si mesma nada de especial. Mas por intermédio dela, Deus prestou a mais belas das homenagens à mulher. Segundo o famoso autor protestante Phillip Yancey, Maria foi o primeiro ser humano a receber a Jesus como seu Salvador. Ao receber do Anjo Gabriel a notícia de que seria mãe do tão aguardado e tão incompreendido Messias, e que seria fecundada pelo poder do Espírito Santo, Maria diz simplesmente: “Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo tua palavra” (Lc 1:38), e imediatamente ela entoa um dos textos mais belos de toda a Bíblia, conhecido como o “Magnificat”, ou “O Cântico de Maria”. Maria acompanhou Jesus por toda sua vida, ainda que por vezes não fosse capaz de crer, como todos os outros membros da família do Mestre, e era uma das mulheres velando Jesus aos pés da cruz. No evangelho de João, Jesus pede ao suposto autor do evangelho que cuide de sua mãe. Nesse gesto simbólico, é como se Jesus pedisse a todos nós, homens, para que cuidemos e tratemos com carinho de toda mulher, como se cada uma delas fosse nossa própria mãe.
            Outra coisa me impressiona no caso de Maria. Como Jesus é o Verbo de Deus feito carne, como compartilha da substância da divindade, Ele poderia se tornar homem da forma como bem entendesse. Jesus poderia ter nascido de uma folha de alface, e ainda assim seria Deus feito homem, não mudaria nada (até ajudaria, porque seria um nascimento para lá de sobrenatural). Jesus, porém, preferiu nascer carne humana vindo da carne humana. Mas reparem bem: Ele abriu mão de nascer de um pai, mas não de uma mãe! Não quero discutir aqui os aspectos científicos da (im)possibilidade de Jesus ter nascido de uma virgem, nem o fato de que a encarnação de um deus a partir de uma virgem tem paralelos em outros contextos religiosos, como no caso do Mitraísmo. Quero aqui enfatizar que o Deus-homem nasceu de uma mulher para resgatar a dignidade perdida quando do evento do Gênesis. Se o homem culpa a mulher pela perda do paraíso, Deus a dignifica fazendo dela nascer o Salvador que nos dará o Céu. Deus havia feito essa promessa no próprio Gênesis, mas perece que até hoje nós ainda não entendemos bem isso.
            Em Maria, todo o propósito de Deus para as mulheres foi cumprido. Maria é a prova histórica e teológica de que só a mulher pode ser ao mesmo tempo “Filha do Pai, Mãe do Filho e Esposa do Espírito Santo”. Talvez os séculos de opressão, discriminação e humilhação que a mulher vem sofrendo nos contextos cristãos tenham como causa uma inveja que nós, homens, temos desse privilégio feminino.
            Parabéns a todas as mulheres. Não pela sua data festiva, mas por cada dia em que vocês se mostram verdadeiras heroínas da fé, mesmo em momentos em que não parece haver nada em que se acreditar. Todas vocês são filhas do Pai, mães do Filho e esposas do Espírito Santo. Vocês são a personificação do perdão e da compaixão que constituíram os dois grandes mandamentos de Cristo. Vocês são o coração de Deus irradiando Amor no mundo.