sábado, 29 de janeiro de 2011

CRÔNICAS DO COTIDIANO: UM DIA NO SHOPPING ou A CULTURA FAST-FOOD ou A ERA DO CONTROLE REMOTO


 Não me diga que me ama
Não me queira não me afague
Sentimento pegue e pague
Emoção compre em tablete
Mastigue como chiclete
Jogue fora na sarjeta (quem vai querer comprar banana?)
Compre um lote do futuro
Cheque para trinta dias
Nosso plano de seguro
Cobre a sua carência
Eu perdi o paraíso
Mas ganhei inteligência
Demência, felicidade,
Propriedade privada

(da canção “Piercing”, de Zeca Baleiro)
 

Uma coisa sou obrigado a admitir: mesmo indivíduos excêntricos inclinados à filosofia ou chatos de galocha críticos de tudo (e eu me enquadro em ambas as descrições) precisam, vez por outra, agir como “pessoas normais”, ou seja, fazer o que todo mundo faz. Movido por esse impulso, dias atrás visitei pela primeira vez o novo shopping center de minha cidade, inaugurado no início de dezembro passado. Esperei apenas passar toda aquela balbúrdia das festas de fim de ano, para não encarar a visão do inferno de um shopping center superlotado, e lá fui eu me fingir de terráqueo comum.
           O projeto do novo shopping center é interessante: da entrada principal até o prédio propriamente dito temos uma caminhada de mais de uma centena de metros, através de um corredor decorado como se fosse uma praça, ladeado por pôsteres enormes com fotos gigantes de pontos turísticos da cidade, cuja existência até então provavelmente era desconhecida para 99% da população do município, além das chopperias. Ótima a idéia de colocar as chopperias fora do prédio do shopping center, por duas razões: primeiro por permitir seu funcionamento mesmo após o fechamento das outras lojas, e segundo, como as chopperias ficam ao ar livre, sem ar condicionado, o calor se torna um convite para beber um pouco mais (e os donos agradecem por isso). No meio desse corredor de entrada, algumas pequenas cascatas artificiais abastecem um estreito e comprido lago artificial. Aproximei-me dele, a fim de descobrir se haviam peixes. Mas só encontrei lixo. Típico de lugares freqüentados por “pessoas normais”.
           Por dentro, o shopping center é apenas um shopping center, com todas as lojas encontradas em todos os shopping centers. Incrível como eles conseguem ser virtualmente idênticos. Depois de circular por todos os andares em busca de algo diferente, interessante (levei menos de 10 minutos fazendo isso), ficou a triste constatação: o novo shopping center celebrou de forma emblemática a morte da cultura em minha cidade. Não há uma livraria sequer. Se eu quiser comprar algum produto com a logomarca de meu time de futebol, tenho pelo menos umas quatro opções; querendo um livro, tenho que apelar para as lojas virtuais da internet, ou ir a outro shopping center. O melhor mesmo seria, infelizmente, me deslocar até outra cidade.
           A princípio, a idéia de um centro de compras (para os leitores menos atentos, é isso o que “shopping center” significa) parece maravilhosa. Muitas lojas, vendendo os mais variados produtos, além de cinemas, restaurantes e salões de jogos, tudo reunido em um único lugar. Prático, não? Mas já pararam para pensar no preço dessa praticidade toda? Nós simplesmente perdemos o hábito de andar pelas ruas, de passar pelas pessoas e dizer “bom dia”, “boa tarde”, de observar o lugar onde vivemos. Apenas algumas localidades do interior ainda mantêm esse costume, mas mesmo o interior está perdendo esse ar de humanidade, e está sendo contaminado por essa lógica individualista que assola as grandes cidades. Tudo bem, existe o aspecto da segurança: os shopping centers são bem mais seguros do que as ruas, não posso negar, e existe ainda a questão da já citada praticidade, por termos a quase certeza de encontrar tudo o que queremos. Mas será que vale o preço?
           Nossa pós-modernidade gerou uma espécie de “cultura fast-food”, onde tudo tem que ser rápido, e ao mesmo tempo exigir o menor esforço possível. Podemos também chamar nosso tempo de “era do controle remoto”. A lei do menor esforço, estudada cientificamente pelas correntes tayloristas da administração no início do século XX, transpõe as fronteiras da produção industrial, para invadir todos os aspectos de nossa vida. Tudo isso a despeito do fato das teorias da administração posteriores tecerem severas críticas ao Taylorismo, por se tratar de uma forma extremamente robotizante e robotizada de se conceber o ser humano. Taylor abordou o trabalho pensando apenas em seu aspecto prático, sem levar em conta outras dimensões da natureza humana. Uma das mais brilhantes críticas a esse modelo é o filme “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin. Recomendo a todos. Filmado há mais de 70 anos, o filme consegue se manter irresistivelmente atual, e além de ser uma crítica muito inteligente, é também uma hilariante comédia.
Antigamente, nossas avós faziam bolos para o lanche. Compravam cada um dos ingredientes (quando não pegavam alguns deles no quintal, das hortas, pomares ou galinheiros), misturavam tudo segundo as mais variadas receitas, e depois colocavam para assar. Isso gerava nas crianças uma expectativa muito boa de se sentir, ainda mais quando elas tinham permissão para participar do processo. Hoje em dia, compra-se uma massa pronta, que após alguns minutos em um forno de microondas já pode ser servida. O que perdemos em relação ao tempo dos avós? Simplesmente o prazer de preparar um bolo. Ficamos tão focados em nossas metas, em nossos pontos de chegada, que sequer percebemos como o caminho até eles pode ser belo, ou pelo menos divertido. Até mesmo a atividade física entrou na dança, e hoje em dia, diversos canais de televisão especializados em televendas anunciam, como a técnica mais revolucionária para o emagrecimento e aquisição de condicionamento físico, um aparelho onde você se exercita sem precisar se mover. Como assim fazer exercícios sem sequer se mover? Até entendo a motivação dos gordinhos, mas por que razão um sujeito que não quer se movimentar vai querer condicionamento físico? E depois dizem que eu é que sou estranho...
           Caminhar pelas ruas, contemplando as árvores, os pássaros, passear pelas praças, cumprimentar as pessoas, brincar com as crianças, e eventualmente entrar em uma loja, tudo isso hoje é considerado pura perda de tempo. O negócio é correr para um shopping center, comprar o que se precisa, e voltar para casa o mais rápido possível, para usufruir o bem de consumo adquirido. Novamente o consumo orientando nossas ações (e me perdoem se estou me tornando repetitivo). Outra vez a máquina capitalista nos levando para o inferno do individualismo extremo. E infelizmente, o argumento da segurança acaba sendo convincente, realmente a violência é um problema real, não podemos fingir que ela não existe.  E no fim, a triste constatação: o capitalismo não precisa de significado, e muito menos de beleza. Ele só precisa ser prático.
Imaginemos um ET hippie que por acidente venha parar em nossa mãe Gaia. Mas por infelicidade ele caiu justamente no trecho mais urbano de uma grande cidade. Observando a Terra, protegido por seu “aparelho de invisibilidade” (suponho que extraterrestres avançadíssimos possuam geringonças desse tipo), nosso mochileiro das galáxias não tardará em constatar algumas coisas: os humanos vivem dentro de grandes caixas, de diferentes tamanhos, cada uma delas abrigando diferentes quantidades de indivíduos (depois ele vai aprender que as tais caixas se chamam casas e edifícios). Para sair dali, os primitivos terráqueos se enfiam em outra caixa, essa bem menorzinha. Mas ao contrário das primeiras, essas pequenas caixas se movem, sempre rapidamente, de um lugar para outro (quem deduzir que eu estou falando de automóveis, parabéns: é isso mesmo). Nosso ET imediatamente liga os foguetes propulsores de sua mochila espacial (claro que eles têm isso; eles têm até aparelhos que os tornam invisíveis!), e parte no encalço dos humanos que se deslocam dentro da caixinha ambulante, querendo descobrir o que farão. E o que fazem os humanos quando a caixinha que os transporta pára? Entram imediatamente em outra caixa grande imóvel, que pode ser o local de trabalho, uma academia de ginástica, a escola, uma universidade, teatro, ou até mesmo um shopping center. Talvez o ET conclua que os seres humanos são totalmente sensíveis à luz solar, e morreriam tostados, caso saíssem de suas caixas. De volta ao seu planeta, o ET diria que sequer conseguiu ver direito como era a aparência dos terráqueos. Eles não se expunham à luz solar, sempre se deslocando de caixa em caixa. Andando pelas ruas, nosso amigo intergalático viu apenas cães, mendigos, drogados, prostitutas e outros párias sociais. Mas o nível de degradação deles era tão grande, que nosso amigo de outro mundo não conseguiu diferenciá-los. Os humanos “de verdade” só se deslocam de caixa em caixa, concluiu.
Essa cultura do “tudo muito rápido e sem esforço” fez de vítima até mesmo a língua portuguesa. A Última Flor do Lácio Inculta e Bela, tão bem cantada pelo poeta Olavo Bilac, vem sofrendo inúmeras violências, e está se transformando gradativamente em outro idioma. O famoso “miguxês”, por exemplo, como foi batizada a nova forma de expressão escrita popularizada entre os jovens pela internet por conta dos sites de relacionamento e dos programas de mensagem instantânea, é sim, admito, uma nova forma de linguagem, com suas especificidades e sua legitimidade em termos de manifestação cultural. Mas reparem como o tal do miguxês é todo baseado em reduzir o tamanho das palavras, normalmente suprimindo vogais (“você” vira “vc”, “também” vira “tb”, e assim por diante), substituindo letras por outras com mesmo som (sempre que uma palavra tem “ch”, digita-se um “x”, por exemplo), ou usando outros caracteres para substituir as letras (a palavra “demais” vira “d+”, e assim sucessivamente). Resumindo, é uma linguagem que tem como regra básica digitar menos caracteres, falar mais com menos esforço. Perde-se totalmente o sentido estético do idioma, toda a sua beleza gramatical, em nome do mero pragmatismo de comunicar. Eficiente, mas muito feio. Poesia então, já nem se sabe mais o que é isso, e aí estão todas as bandas coloridas, funkeiros e cantores sertanejos universitários, que não me deixam mentir. O miguxês seria então a versão “fast-food” da língua portuguesa, específica para uso online, bem ao gosto do inglês norteamericano (os mestres da filosofia fast-food). Apenas a título de informação, os norteamericanos caminham a passos largos para transformar o idioma de Shakespeare num mero agrupamento de monossílabos.
Nossa cultura faz com que até os nomes próprios sejam reduzidos, simplificados, normalmente à sua primeira sílaba. Assim, Fernanda vira “Fê”, Eduardo vira “Edu”, Maria Lúcia vira “Malu”, José Carlos vira “Zeca”, Patrícia vira “Paty”, e por aí vai. “Que cara chato! Isso é apenas uma forma carinhosa de tratar as pessoas!”, meu leitor pode pensar nesse momento. Mas é o carinho “fast-food”: sob a roupagem de um tratamento carinhoso, você não precisa mais se preocupar em lembrar se sua amiga se chama Rosa, Rosângela, Rosana, Rosane, Rosiane, Roberta, Ronalda, Ronilda, Rosilda, Rosaura, Rosália, Roxana, Rossana etc. Basta chamá-la de “Rô”. Não é menos informação para dar conta?
Não sei se vocês notaram que o tempo todo eu usei a expressão “shopping center”. Alguém estranhou? Pois minha intenção foi justamente demonstrar esse aspecto simplificador da cultura pós-moderna. Afinal, todo mundo hoje diz apenas “shopping”. Mais prático? Pode ser. Melhor? Tenho minhas dúvidas. Quando reduzimos algo ao seu aspecto prático, pragmático, quando simplificamos nossa realidade em nome da velocidade e do menor esforço, corremos o risco de não percebermos toda a diversidade, complexidade e beleza desse algo, e acabamos ficando com uma experiência e uma percepção muito limitadas de nossa realidade. E porque nesse caso suprimimos o “center”, e não o “shopping”? Elementar, meu caro leitor: CENTER significa “centro”, e SHOPPING significa “compras”, ou o “ato de comprar”. Qual desses dois significados o nosso modo de produção capitalista e a nossa lógica consumista preferem que seja mantido?
Decididamente, essas não são reflexões comuns de se encontrar em um shopping center, embora não deixem de ser pertinentes. Por fim, acabei ligando para dois amigos, e terminamos a noite sentados à mesa de uma das chopperias do shopping (sem o “center”, afinal, também sou filho de Deus, posso querer economizar caracteres, especialmente em nome de não agravar ainda mais as minhas tendinites). Lá, bebemos chopp, e discutimos a morte da cultura de nossa cidade, e sobre como poderíamos proceder para ajudar a ressuscitá-la. Estávamos no melhor lugar para discutir esses assuntos? Talvez sim. O grande símbolo de uma sociedade que prima pela velocidade, pela facilidade e pela praticidade, em detrimento do conteúdo, dos significados mais profundos, belos e amplos, o ícone de um mundo que olha uma viagem e só vê a chegada ao destino, perdendo toda a beleza do caminho, pode ser o melhor lugar para se falar em conteúdo, e em beleza. Pelo menos os objetos de nossas críticas estão lá, ao vivo e a cores. E lembremos sempre o conselho que provavelmente seria dado por nosso amigo ET: vamos ao shopping, isso em si mesmo não tem absolutamente nada demais. Mas jamais nos esqueçamos: ainda existe um mundo lá fora.