quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A ARTE DE PERGUNTAR "POR QUÊ?"


Os pecados são todos meus
Deus sabe a minha confissão
Não há o que perdoar
Por isso mesmo é que há de haver mais compaixão
(da canção “Drão”, de Gilberto Gil)


Os últimos acontecimentos de minha vida me ensinaram muito. Fui privado de tanta coisa, e a cada novo golpe da vida eu me percebia tal como uma espada, sendo pacientemente forjada pelo Grande Ferreiro do Universo. Golpes duros, fortes, mas precisos, e necessários para dar forma à espada. Sem eles, ela perderia o fio amolado.
O Mestre disse certa vez duas frases, conhecidas como a Regra de Ouro: Ele nos advertiu para não fazermos aos outros as coisas que não gostaríamos que fossem feitas a nós, e nos aconselhou a fazermos aos outros as coisas que gostaríamos que nos fizessem. Na verdade a mesma máxima, escrita com redações opostas. Uma subentende a outra.
            Às vezes um axioma é confirmado não por sua realização, mas exatamente por ele não se concretizar. E assim fui sendo forjado, aprendendo a jamais negar, a quem quer que seja, qualquer coisa de que fui privado ou privei os outros. Por não compreender e não ter sido compreendido, aprendi a ser compreensivo. Por não dar e não receber compaixão, aprendi a ser compassivo. Por não perdoar e não ter sido perdoado, aprendi o valor do verdadeiro perdão. Por ver em mim mesmo e em todo lado rancor e mágoa, aprendi a esquecer. Por cobrar demais dos outros e por ter sido cobrado de coisas acima de minha capacidade, aprendi a não exigir nada de ninguém. Por ser ignorado e por ignorar, aprendi a não esquecer as pessoas. Por me terem feito chorar, e por ter feito tanta gente chorar, aprendi a sorrir, e a tentar levar os outros sempre a sorrir. Por ter sido deixado na solidão, e por abandonar quem precisava de mim, aprendi a não deixar ninguém sozinho. Por não ter sido amado de verdade, e por muitas vezes não traduzir em atos o amor que senti, aprendi o quanto devo amar. Por eu ser injusto exatamente tentando ser justo demais, e por terem sido injustos comigo, aprendi que não devo jamais faltar com a justiça para com ninguém.
            As pessoas frequentemente se apegam a coisas nas quais elas querem acreditar, independente de serem ou não verdadeiras. Mesmo eu não escapo disso, e talvez esteja apenas criando minha própria ilusão, a fim de entender os caprichos de um destino cego, ou mesmo para tentar me isentar da culpa pelos meus atos. Mas isso só muda minha compreensão dos acontecimentos, e não tem qualquer relação com o fato de eu carecer de compreensão, de compaixão, de perdão, ou pelo menos de justiça. Preciso e careço de não ser deixado em minha própria solidão, e preciso muito, mas muito mesmo, não ser cobrado para além de minhas capacidades. Fiz algo para merecer qualquer dessas complacências? Isso nem importa: pelo simples fato de ser humano, de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, e de sofrer todas as mazelas da condição humana, mereço ser tratado como gente.
            Certos atos são tão simples, e ao mesmo tempo são inacreditavelmente difíceis de serem executados. Compreensão, por exemplo. Buscar entender, colocar-se no lugar do outro, é o ponto de partida para todos os outros gestos de amor, é a base para toda ação realmente transformadora. Tendemos a explicar as coisas segundo nossos valores, retirando de nossos arsenais de respostas prontas soluções para tudo e para todos. Mas precisamos atirar fora essa capa de preconceito, para em seguida dizermos a palavra mágica: “por quê?”. Talvez com isso, mesmo o ato aparentemente mais insano de nosso semelhante comece a fazer sentido. Que motivação o levou a fazer o que fez? Essa indagação deve sempre passear por entre nossos lábios e mentes. Mas a resposta para ela deve vir não de nossas suposições, mas diretamente do coração de nosso semelhante. E para isso nós precisamos ouvi-lo, precisamos abrir nosso coração através de nossos ouvidos, ainda que o que venhamos a ouvir possa ser estranho, ou mesmo nos machucar. Entendendo nosso semelhante, podemos nos identificar com seu sofrimento. Perdoamos com mais facilidade. Tendemos a ser mais compassivos.  Temos mais chances de ser justos.
            Uma coisa deve ficar clara: entender de forma alguma significa concordar. Entender o outro é tão somente absorver a sua lógica, saber por que o outro fez o que fez. Não devemos compactuar com o erro; na verdade, temos inclusive o dever de combatê-los. Mas sempre devemos combater esse bom combate com a consciência de que poderíamos ser nós cometendo aquele erro, e nesse caso, como gostaríamos de ser tratados? Agir diante do erro alheio da forma como gostaríamos que agissem conosco em igual situação é agir com compaixão.
            Compaixão. Significa literalmente “sofrer junto”. O maior exemplo de compaixão já visto pelo mundo, para mim, foi o de Jesus Cristo. Diz o texto bíblico que em Jesus, Deus se esvaziou de sua divindade, para sentir todo o sofrimento humano em seu próprio ser. Ao gritar “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”, pendurado na cruz, o Mestre vivenciou da forma mais horrenda o absurdo da existência, o total desamparo, total solidão. E Jesus nos orienta a amarmos uns aos outros, da mesma forma como Ele nos amou. O cumprimento desse mandamento também implica em sermos compassivos, em nos identificarmos com o sofrimento do próximo.
            Percebo com pesar ser essa uma disposição de ânimo tão rara entre as pessoas. Eu mesmo sempre defendi esse ponto de vista em nível teórico, mas precisei de uma das lições mais dolorosas de minha vida para começar a colocar isso em prática. E mesmo assim, não o faço como imagino que deveria; o velho homem em mim ainda se debate, tentando seus últimos esforços para se manter vivo, soltando gritos de agonia. Lutero dizia que a vida do cristão deveria ser uma eterna penitência, dada a nossa incurável tendência para o erro. E enquanto eu for humano nesse mundo preciso de compreensão e compaixão. De dar e receber compreensão e compaixão.