sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O RESPEITO ÀS DIFERENÇAS


Já não há mais culpado, nem inocente
Cada pessoa ou coisa é diferente
Já que é assim baseado em quê você pune quem não é você?
(da canção “Novo Aeon", de Raul Seixas, Claudio Roberto e Marcelo Motta)

“Quando você for elogiar a magnífica onça-pintada que o patrão caçou, muito cuidado: vai ver que o que ele acha o máximo da habilidade é caçar gambá” (Millôr Fernandes)


Dias atrás, estava eu na mesa do bar de um amigo, conversando com um grupo de pessoas. Comentávamos o recém acontecido casamento de um primo meu, do qual fui padrinho. Meu primo, (além de primo um de meus melhores amigos) sempre foi uma pessoa extremamente extrovertida, e isso muitas vezes fazia as pessoas não o levarem a sério. Muitos o achavam irresponsável, e apostavam que ele jamais seria alguém na vida. Mas em seu casamento, ele resolveu provar ao mundo que era alguém, brindando-nos com uma festa altamente extravagante. Na cerimônia, presença de quatro padres, e um festival de piadinhas, quase todas partindo do próprio noivo, como a simulação de uma crise de tosse na hora de dizer “SIM”.  Até mesmo os padres contaram suas anedotas. Tudo muito descontraído, as pessoas riram o tempo todo. E era uma cerimônia católica de casamento. Alguns, inclusive, consideraram desrespeitoso. A chegada dos noivos no salão de festas foi saudada pelos padrinhos (mais de vinte casais) portando velas acesas, formando um cortejo, enquanto o noivo explodia um tubo que arremessou um bocado de papel celofane picado para o ar. Tivemos ainda queima de fogos, música ao vivo (da qual os convidados que eram músicos puderam participar), e quase 500 litros de chopp, servidos em canecas de acrílico estampadas com a caricatura dos noivos, que os convidados levaram para casa, como recordação. Tudo isso, somados aos mais de dez anos de namoro do casal, tornou o evento o acontecimento do ano no bairro.
            Na mesa do bar, alguns diziam ter sido o evento um gasto de dinheiro inútil (e não foi pouco, diga-se de passagem). Haveriam maneiras mais inteligentes e úteis de gastar esse dinheiro, diziam. No fim, todos pareciam concordar que não apenas esta, mas toda e qualquer festa de casamento seria um gasto inútil de dinheiro. Até mesmo eu concordo com isso em larga medida, mas não demorou muito para uma das mulheres à mesa reclamar: “mas toda mulher sonha em casar de véu e grinalda”.  Por que razão as mulheres costumam dar tanto valor a coisas sem nenhum sentido prático? Flores, festas de casamento, poemas declamados, caixas de bombons, o mero reparar na mudança de um penteado, são todos fetiches altamente valorizados pelas mulheres, e tremendamente desprezados pelos homens. Nós, homens, só nos preocupamos com isso quando essas coisas se tornam “ferramentas”, quando nos ajudam a conquistar e/ou agradar as mulheres.
            Sempre existem exceções, mas em geral os homens valorizam as coisas pelo seu aspecto prático, racional, enquanto as mulheres se orientam por uma escala de valores afetivos. Já repararam como são freqüentes as situações em que um grupo simplesmente não consegue entender as motivações do outro, e quantas desavenças surgem exatamente dessa falta de compreensão? Isso só reafirma uma situação óbvia: homens e mulheres são diferentes, têm suas peculiaridades. Assim também as crianças, os idosos, enfim, cada indivíduo desse mundo tem suas particularidades, cada ente desse planeta (e de qualquer outro, até onde sei) é um ser único, inimitável, que jamais vai se repetir. E estas singularidades devem ser, antes de tudo, respeitadas, mesmo se nos parecerem estranhas, de mau gosto, loucas, ou até mesmo ridículas.
            Em geral, a sociedade elege um conjunto específico de características, gostos e hábitos como sendo o padrão, como “o correto”, “o jeito saudável de ser”, como aquilo que define as “pessoas legais” (aquelas que você nunca pode deixar de convidar para sua festa, especialmente se você quiser a presença de alguns paparazzi). O mercado de trabalho faz a mesma coisa ao criar o estereótipo do “bom profissional”. Todo mundo então passa a viver tentando se moldar a esses estereótipos, numa busca neurótica por aceitação social, por sucesso na vida, por um lugar em seu grupo social. Assim, nós queremos sempre nos vestir com as cores da moda, ouvir as canções da moda, assistir aos filmes da moda, comer os venenos com gergelim da moda, enfim, queremos fazer tudo o que fazem as pessoas que estão na moda. “Eu tenho que fazer isso porque as pessoas legais fazem isso, e eu também quero ser visto como uma pessoa legal”. Essa voz de comando povoa o inconsciente de quase todos nós. Apenas não costumamos nos dar conta disso, não temos consciência de sermos assim. Mas é uma voz praticamente onipresente, o tempo todo guiando nossas ações.
Os meios de comunicação exercem um papel crucial nesse processo, vendendo ao público imagens, sonhos, metas e desejos, quase sempre ilusórios, inatingíveis. A mídia fabrica incessantemente esses estereótipos, invadindo todos os dias nossa privacidade, e sussurrando em nossos ouvidos palavras sobre como devemos ser, como devemos nos comportar, do que devemos gostar e não gostar. Esse processo de massificação é mais profundo entre os jovens e adolescentes, por esses estarem ainda formando suas personalidades, e por serem os grupos etários mais suscetíveis às questões de aceitação por parte de seus grupos sociais. Permitam-me dar um exemplo ilustrativo: uma determinada atriz de TV aparece num programa de auditório dominical usando um corte de cabelo ou uma roupa nova, e dias depois todas as mulheres a estão imitando, inconscientemente esperando que isso as torne tão glamorosas como a atriz. Não tem a menor importância se uma semana atrás aquele corte de cabelo ou aquela roupa fossem considerados de péssimo gosto; agora eles se tornam o último grito da moda. Se a atriz estiver protagonizando algum personagem importante de novela nesse momento, a coisa será ainda mais gritante. E afinal, o que mudou? Mudou o gosto das pessoas? Não, mudou tão somente o fato de alguém famoso, formador de opinião, dizer que é legal.
Mas o que acontece com as pessoas que são se adéquam a esses padrões sociais? Esses só são convidados para as festas por uma questão de obrigação, de boas maneiras. Em geral eles são postos de lado, censurados por seu jeito de ser, e frequentemente admoestados o tempo todo a mudarem de atitude, a se moldarem conforme os padrões, a serem como todo mundo. “Desse jeito, ninguém vai gostar de você!”, ouvimos esse conselho desde a nossa infância. Esses indivíduos ganham a alcunha de esquisitos, excêntricos, ou até de loucos. E qual a solução para essas pessoas? Muitos acabam se juntando a outros indivíduos cujos gostos são parecidos com os seus, e assim formam guetos, chamados hoje de “tribos” pelo jargão politicamente correto. Outros acabam vivendo suas alteridades de forma tão intensa e violenta, que acabam por enlouquecer mesmo, literalmente, e no fim são “tratados”, para voltarem a ser como todo mundo. O que são as mais variadas terapias psiquiátricas e psicológicas senão um processo de formatação, de adequar o indivíduo aos padrões socialmente aceitos? Por fim, alguns desistem de serem eles mesmos, para vestir a camisa dos “socialmente corretos”. O preço disso é a eterna tensão de viver um personagem com o qual não se está identificado. Essa tensão está na base de uma série de neuroses, mas uma vez que elas são oriundas do modo de vida consagrado pela sociedade, imposto a um sujeito que não se adapta a viver desse jeito, essas disfunções passam a ser entendidas por todos como coisas normais, meros efeitos colaterais da pós-modernidade. Acabam então sendo atribuídas a fatores outros como “o stress do dia-a-dia”, ou coisas do gênero, o que até confere ao indivíduo uma certa aura de heroísmo, por ele ser visto como uma vítima das conseqüências do estilo de vida moderno. E essa vitimização no fim compensa o preço pago. “Eu vou pagar a conta do analista, para nunca mais ter que saber quem eu sou”, dizia Cazuza. Quantos não preferem pagar o preço?
E o que torna tão difícil para as pessoas “normais” aceitarem e conviverem bem com quem é “diferente”? A resposta é simples: adequar-se aos padrões socialmente consagrados confere ao indivíduo um sentimento de aceitação, dá a ele uma imagem de pessoa querida, de que todas as pessoas o amarão, e irão querê-lo por perto. Garante o sentimento de pertencimento ao seu grupo. Nossa sociedade vende essa idéia como o ideal de felicidade; o indivíduo é violentamente convencido de que ser feliz é pensar como todo mundo, freqüentar os lugares que todos freqüentam, dançar e cantar as mesmas músicas, beber a mesma bebida, vestir o mesmo tipo de roupa. Resumindo: ser feliz é ser aceito. E para ser aceito por todos, é preciso ser como todos são. Afinal, esse é o raciocínio lógico: se essa é a opção da maioria, deve ser a melhor opção. Ninguém percebe que esses padrões são socialmente construídos, tendo muitas vezes como motivação o consumo, vender novos estilos de vida, e com isso novos produtos, mover a mola do capitalismo, criando demandas, produzindo desejos. Um novo estilo musical, por exemplo, se torna febre porque a mídia nos convence disso, independente da qualidade desse estilo musical.
As pessoas se agarram com unhas e dentes a essa idéia, e esta passa a dar sentido a suas vidas. Elas se convencem de que só serão felizes se forem aceitas pela sociedade, e só serão aceitas caso se comportem da forma como a sociedade determina. Só assim é possível ser feliz, não há uma alternativa, um “plano B”. O que fazer, então, quando estamos diante de alguém que simplesmente não segue nossas regras, mas ao mesmo tempo mostra-se muito feliz, em muitas ocasiões parece até mais feliz do que nós? Eis aqui a raiz do problema: a alteridade, a diversidade, o fato de alguém conseguir viver guiado por valores diferentes dos nossos, e ainda assim viver feliz, nos força a relativizarmos nossos próprios valores, nosso próprio conceito de felicidade. Faz-nos ter de admitir que essa afirmação de que a felicidade só é possível para quem vive como nós é simplesmente falsa. E como muitas pessoas preferem simplesmente não ver os seus problemas a encará-los, muitos preferem discriminar, deixar de lado a alteridade, não precisar conviver com ela, tirar a diferença do campo visual, tentar fingir que as diferenças não existem. Para não ter de admitir que minha receita de felicidade não é a única, e talvez nem seja a mais eficaz, eu acabo extirpando de meu convívio quem possui outras receitas. Muitos pensam assim. E pior, agem assim.
Claro que toda moeda possui duas faces. Não estou aqui fazendo uma apologia à subversão ou à diferença. Muito menos quero obrigar quem se adéqua bem aos padrões da sociedade a mudar, a tornar-se diferente. Cada um tem o direito de ser como quiser, de viver como bem entender. Assim como seguir as normas sociais não garante a ninguém a felicidade, ser diferente também não o faz. Muita gente se esconde em guetos, assume alteridades, apenas porque não consegue tanta aceitação quanto deseja fora desses guetos. Sem conseguir sucesso entre os “normais”, muitos deles se fingem de “diferentes”, para serem aceitos pelos “diferentes”. Isso é o mesmo que viver tentando se adequar aos valores socialmente consagrados, e produz neuroses do mesmo jeito. Não há nenhum valor real em se abandonar uma posição extremista em favor de outra tão radical quanto.
Meu apelo é apenas para que olhemos para quem é diferente exatamente como ele é, e não mais do que isso: como alguém diferente. Mas como alguém. Ser humano como nós, digno como nós, com direitos e deveres como nós. Tentar moldar as pessoas aos nossos padrões é violência psicológica, uma das piores formas de violência que podemos ter para com nosso semelhante (ou nosso “dessemelhante”), Não aceitar suas diferenças é discriminação. Tentar extirpar a diferença de nossa vida é ilusão. E ser feliz é ser como se é, e não como querem que sejamos. Não importa quem queira isso.

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