sexta-feira, 12 de novembro de 2010

EU PREFIRO SER ESSA METAMORFOSE AMBULANTE





E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar
Não tem tempo, nem piedade
Nem tem hora de chegar
Sem pedir licença, muda a nossa vida
E depois convida a rir ou chorar
(da canção “Aquarela”, de Toquinho, Vinícius de Moraes, G. Morra e M. Fabrizio)

Certa vez, Raul Seixas disse que tinha inveja dos atores, pois esses viviam um personagem diferente a cada trabalho, enquanto ele havia sido confinado a um único personagem chamado “Raul Seixas”. Em minhas muitas andanças por aí, costumo sempre observar as pessoas, olhar em cada rosto, para ver se descubro algo desse universo tão diversificado chamado ser humano. Olhar as pessoas e se indagar como elas são, o que fazem, como vivem, é um exercício fascinante, recomendo a todos. Inúmeras pessoas passam por nós todos os dias, e cada uma delas possui sua identidade, sua história. Todas únicas, irrepetíveis. São verdadeiros livros, filmes e documentários ambulantes, quase todos sem ninguém para realmente apreciá-los.
           Tenho por vezes a sensação de que a maioria das pessoas pensa de forma diametralmente oposta a Raul Seixas. Em geral, nós criamos um personagem para nós mesmos, nos identificamos com ele, e nos apegamos a ponto de esquecermos que se trata apenas de um personagem. E digo criamos um personagem mais por força de expressão. Na verdade, esse personagem é criado por um emaranhado de forças de diferentes origens. São fatores biológicos, históricos, psicológicos, sociais, emocionais, espirituais, e se formos colocar na ponta do lápis, nossa participação nisso é até pequena. Raul Seixas estava certo: ele não se confinou em um personagem, ele foi confinado.
           Desde nosso nascimento, começamos a receber uma série de “cascas”, que são postas sobre nós como tinta sobre uma parede branca. Essas cascas vão se sobrepondo umas às outras, esculpindo-nos em formas variadas. Já nascemos com uma série de características biológicas, e logo depois nos é dado um nome (e ninguém pergunta se concordamos com a escolha). Depois vêm as outras cascas: um time de futebol para torcer, uma formação intelectual, uma profissão, família, amigos, convicções políticas, religião, hábitos, manias, e assim sucessivamente. Por fim, damos a esse conjunto de cascas sobrepostas o nome de “EU”. Essa “armadura” adere tão fortemente a nós, que sequer percebemos tratar-se apenas de rótulos, contingências de nossa história pessoal, acidentes de percurso. E se analisarmos bem, quantos desses rótulos foram realmente escolhas nossas? Provavelmente nenhum deles.
           O conjunto dessas cascas, desses rótulos, forma o personagem confundido por nós como sendo nosso eu. Essa confusão é reforçada pelo fato dessa sobreposição de cascas ser virtualmente impossível de ser repetida, dado o número de variáveis envolvidas. Isso confere uma identidade única ao nosso personagem, e acaba nos fazendo pensar em nossos rótulos como sendo parte de nossa essência, como algo inerente ao nosso ser. Somos tão profundamente imersos em nossos personagens, que sempre que somos convidados a falar de nós mesmos, acabamos por apenas dissecá-lo, separando uma por uma as cascas que o compõem.
Sobre nossa essência em si, não somos capazes de dizer nada. Muitos inclusive comparam o homem com uma cebola. A cebola não possui um caroço, um núcleo, e nada mais é do que uma sucessão de cascas sobrepostas. E quando as retiramos todas, o que sobra? Nada. Na verdade, não somos capazes de falar de nossa essência porque não há como se dizer nada de concreto a seu respeito, uma vez que a ela é pura potencialidade, puro “poder-vir-a-ser”. Mas parece que os psicólogos e os budistas são os únicos a compreenderem isso. Tampouco temos meios para atingir nossa essência. Podemos apenas tirar proveito da noção dela, tentando não ficar tão presos ao nosso personagem. Da mesma forma como as cascas nos foram colocadas, elas podem ser retiradas, trocadas, ou podemos apenas acrescentar outras mais. Assim, ficaríamos libertos da prisão de sempre ter que agir em conformidade com nosso personagem. Frases como “Isso não é atitude de alguém de sua classe!” não fariam mais sentido algum.
           Obviamente, sempre existe o outro lado da moeda. Se por um lado a maioria de nós fica restrita a um número muito limitado de rótulos aglutinados em um único personagem, por outro a pós-modernidade, com seus mais diversos pluralismos, gera pessoas com verdadeira fobia a qualquer tipo de rótulo. Gente que troca de aparência física, de ideologia, de religião, de gostos musicais, como se troca de roupa. A alegação é sempre a mesma: “eu não sou preso(a) a rótulos”. Pura ilusão. Na verdade, são pessoas tão presas a rótulos quanto qualquer um, apenas com uma particularidade: são pessoas presas a um único rótulo, que é justamente o rótulo de não ter rótulos. E mesmo a constante mudança de rótulos tem um forte componente social. Em geral, se abraça um rótulo quando este é exótico, quando destaca o indivíduo na multidão. E esse mesmo rótulo costuma ser abandonado quando começa a se tornar padrão, quando se torna lugar comum vê-los em outras pessoas. Não há como negar: isso proporciona uma forte impressão de autenticidade, e de uma identidade bem marcada. Faz as pessoas se sentirem “diferentes”, “especiais”. Mas também é uma ilusão.
           Ao fim das contas, uma coisa parece clara: como nossa essência é pura potencialidade, ela só pode se expressar no mundo através das cascas (Jung preferiria chamá-las de personas, máscaras). Não é livre quem vive preso a um único personagem, mas também não o é quem vive preso a trocar de personagem o tempo todo. Sendo assim, qual a saída? Seria a instauração do segundo grande paradoxo: da mesma forma que devemos viver como se fôssemos morrer amanhã e ao mesmo tempo fôssemos viver para sempre, precisamos vivenciar nossos personagens em toda sua intensidade, sem contudo nos apegarmos a qualquer um deles. Apenas a título de ilustração, há menos de dois anos atrás, eu era casado, morava em Itaboraí, e trabalhava no Banco Itaú. Hoje eu sou solteiro, moro em São Gonçalo, e trabalho na UFRJ. Quase nenhuma dessas mudanças foi escolha minha, e o que seria de mim se eu estivesse apegado ao meu antigo personagem? Como desenvolver de forma sadia o novo? Sem dúvida, não haveria como. Eu seria apenas um zumbi, um ser sem alma, vagando à procura de um fantasma, um ser já há muito falecido. Quantas pessoas assim cada um de nós não conhece?
           Num ponto dou razão ao budista. A maioria de nossas mudanças ocorre à revelia nossa, não são escolhas conscientes. E uma Paz de espírito verdadeira (Paz com “P” maiúsculo, não a calmaria, que também é ilusão) advém exatamente quando nos tornamos capazes de transitar por essas mudanças, colaborando com elas sempre que pudermos e quisermos, quando tomamos consciência de que não temos total controle do processo, e muita coisa acontece independente de nossa vontade, mas principalmente quando conseguimos não nos apegar a nenhum dos personagens criados.
           Apenas depois de termos consciência de que tudo o que pensamos ser, e tudo o que o mundo pensa que somos, não passa de meros rótulos impostos a nós por nossas histórias pessoais, podemos realmente tentar olhar para dentro de nós, e assim conseguir enxergar nosso verdadeiro eu. Do contrário, veremos apenas máscaras.