quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

ANO NOVO, VELHOS RITUAIS


          Mais um ano chega ao fim, e se não houver nenhuma hecatombe inesperada, logo no dia seguinte um novo ano se iniciará. Assim como no Natal, as pessoas irão se reunir, trocar votos de felicidade, e desejar um futuro melhor do que foi a vida até aqui. Mas ao contrário do Natal, onde as festas têm características mais familiares, e as pessoas ficam mais compenetradas, alguns chegando inclusive às lágrimas (muitos ficam tristes no Natal), o Ano-novo ganha sempre contornos mais carnavalescos. Aliás, o brasileiro tem a estranha mania de transformar tudo em Carnaval, e o Natal é uma das poucas festas que escapa.
           O Réveillon também é o momento das esperanças no futuro, e para garantir um futuro melhor vale tudo, até mesmo as mais bizarras superstições. Roupas brancas clamam por paz, roupas íntimas ganham a cor que simboliza a principal necessidade de quem a usa (dourado para um ano melhor financeiramente, vermelho para quem busca um novo amor, e assim por diante). Mas o que seria dito de pessoas na beira de uma praia, todos vestidos de branco (menos as cuecas, calcinhas e sutiãs, que inclusive ficam visíveis debaixo das roupas brancas, tornadas quase transparentes pela água, pelo suor e pelas bebidas, pois há quem inclusive tome banho de champanhe ou cerveja), comendo uvas verdes, enquanto dão pequenos saltos sobre as ondas, apoiados em um pé só, coincidentemente, sempre o direito? Em qualquer outra época do ano, a conclusão seria de que se trata de lunáticos, ou de adeptos de alguma religião exótica (o que para muitos é a mesma coisa). Mas no Ano-novo pode. Até os artistas fazem!
           Impressionante a necessidade do ser humano de repetir sempre os mesmos rituais. Parece coisa de homens primitivos, de mentalidades animistas, pré-científicas. Mas mesmo nossa “avançada” mentalidade cartesiana é dada a fazer as coisas sempre do mesmo jeito como foi feito da primeira vez que deu certo. Agimos inconscientemente como se fazer diferente fosse provocar a ira dos deuses, e com isso trazer castigo, desgraça. Quando um rito é praticado por uma única pessoa, ele é considerado patológico, é batizado com o simpático nome de “TOC” (Transtorno Obsessivo-compulsivo, último grito da moda, especialmente depois que Roberto Carlos admitiu sofrer dele), e um tratamento médico e psicológico é sugerido. Mas quando um determinado rito é praticado por todos, ou pela maioria, ele passa a ostentar o status de “tradição”, “cultura”, e não apenas sua prática é incentivada, como não praticá-lo é que passa a ser condenável. “Todo mundo faz isso, por que só você não o faz? Por que você sempre quer ser diferente?” A velha questão da aceitação no grupo social, cujo preço muitas vezes é agir como todo mundo, mesmo que às custas de contrariarmos nossas convicções pessoais.
           Nossos ritos sociais, em geral, não se restringem ao aspecto espacial, mas também possuem uma dimensão temporal. Como já anteriormente citado, comer uvas vestido de branco enquanto se pula sobre um pé só sobre as ondas da praia só é considerado normal na noite de Ano-novo. Em qualquer outra data seria um ato insano, dá até internação. As tradições (rituais socialmente consagrados) têm não apenas lugares e formas, mas também tempos “corretos” para serem praticadas. Além de rituais, o ser humano também é inclinado a criar ciclos, como se a vida fosse uma dança, com seus ritmos peculiares. Nos inclinamos a fazer sempre as mesmas coisas nos mesmos tempos. Tudo bem, meu leitor pode retrucar que toda a natureza opera por ciclos, e todos os seres vivos moldam seus comportamentos conforme esses ciclos. Mas no caso de animais e plantas isso não é uma escolha; eles são geneticamente programados para responder a esses ciclos naturais. O ser humano, por sua vez, mesmo podendo escolher, prefere se manter preso aos seus rituais e ciclos. E mais grave: os rituais e ciclos humanos, em larga medida, já não são mais orientados por aspectos naturais, ou mesmo pelo arcabouço cultural acumulado ao longo da história. Hoje muito de nossos ritos e ciclos têm como mola-mestra o mover da máquina capitalista, e orientam, na verdade, o ritmo de nosso consumo.
           Reparem como ao longo do ano, não há um momento sequer em que a mídia não esteja propagandeando nenhuma data festiva, datas essas que foram transformadas de tradições a meros ensejos para o consumismo. Tudo convenientemente preparado para nos fazer adquirir bens, gastar dinheiro. Começamos o ano sendo estimulados a gastar com o Carnaval, e imediatamente após ele, a mídia já começa a divulgar a Páscoa. Logo depois vêm o Dia das Mães, o Dia dos Namorados, as Festas Juninas, o Dia dos Pais, o Dia das Crianças, o Dia de Finados (até o dia dos mortos vira objeto de consumo, e os floristas agradecem), e por fim, o Natal. E cada uma destas datas tem seu significado original meticulosamente distorcido, para nos fazer gastar dinheiro.
           Desejo que 2011 seja o ano em que começaremos a fazer diferente. Que o encerramento de mais esse ciclo, que inclusive não marca só um novo ano, uma vez que 2011 também inicia uma nova década, nos leve a uma reflexão que nos faça ressignificar nossos velhos rituais e ciclos. Que possamos parar para simplesmente contemplar a beleza de nossas tradições, tradições essas que muitas vezes já não conseguimos mais enxergar, ocupados como estamos, ora consumindo, ora trabalhando para termos mais dinheiro para consumir ainda mais. Que possamos olhar os velhos ritos com novos olhos, e assim iniciarmos uma ação verdadeiramente transformadora em nossas vidas. Mas principalmente que possamos olhar nos olhos uns dos outros e dizer de coração: FELIZ ANO-NOVO!